Neste final de ano, nosso historiador-cronista filosofa sobre as virtudes do esquecimento e do otimismo, dentre outras coisas.
LEMBRAR E ESQUECER.
José Carlos Sebe Bom
Meihy
O fim do ano está aí. Mais uma coleção de dias
somados se lança no mistério do tempo passado. É momento de avaliação, de
meditar sobre feitos e desfeitos, conquistas e derrotas. Estranho esse processo
pessoal, íntimo e muitas vezes secreto. A inevitabilidade de se assumir tal
postura é assinalada pelos rituais que marcam o suposto fim de etapas que
alimentam esperanças sempre remoçáveis. Quem trabalha com temas como “memória”,
no entanto, aprende logo que o esquecimento faz parte de seu conteúdo. Não
existe lembrança sem esquecimento. Apesar da aparente contradição entre lembrar
e esquecer, no âmago da estrutura rememorativa, o verbo esquecer
se apresenta como condição. Toda memória é seletiva e seu comportamento se
orienta exatamente pela escolha – consciente ou não – do que deve permanecer.
Muito além dos preceitos teóricos de quantos filósofos se dedicam ao assunto,
me ocorre sempre um poema do alemão Bertold Brecht que reza no verso intitulado
Louvor do
Esquecimento: “Bom é o esquecimento senão como é que o filho deixaria a mãe que o
amamentou e que lhe deu a força dos membros e o retém para os experimentar?/ Ou
como havia o discípulo de abandonar o mestre que lhe deu o saber?/ Quando o
saber está dado o discípulo tem de se pôr a caminho./ Na velha casa não entram
os novos moradores se os que a construíram ainda lá estivessem, pois a casa
seria pequena demais./ O fogão aquece o oleiro que o fez e já ninguém o conhece
o lavrador e nem reconhece a broa de pão./ Como se levantaria, sem o
esquecimento da noite que apaga os rastos, o homem de manhã?/ Como é que o que
foi espancado seis vezes se ergueria do chão à sétima pra lavrar o pedregal,
pra voar ao céu perigoso?/ A fraqueza da memória dá fortaleza aos homens”.
Que o ano foi difícil não resta dúvida. Foram tantos
os eventos significativos que nossa memória se exercita em sínteses fatais e
que sentenciam o passado como “bom” ou “ruim”, simplesmente. Válido ou não,
precisamos do julgamento, pois sem ele tudo fica relativo. É exatamente neste
panorama que atua a construção da moral da vida. Valem, portanto, as sondagens
sobre o que esquecemos, ou melhor, sobre o que escolhemos deixar de lado. Nem
sempre tais opções ocorrem no nível da consciência, pois muito dessa prática
acontece em surdinas voluntárias. De toda forma, a saúde vivencial recomenda o
abandono de fatos doloridos, desprezíveis ou ameaçadores. É preciso continuar
vivendo, erigindo sonhos que nos impulsionam, senão... Se acumulamos fatos
maus, se não os negociamos com a capacidade de perdão, como continuar a crer na
humanidade, nos tais próximos mais próximos, nos amigos que precisamos para
alimentar convívios? Sempre que me deparo com alguém esperançoso e otimista, avalio
sua capacidade de abandono das agruras que a vida impõe a todos. Felizes não
são os que apenas esquecem, mas, sobretudo, aqueles que aceitam os fatos
deixados de lado. Por certo, os que fazem dos dilemas existenciais a razão de
suas lembranças e nutrem um compósito de ódio e mágoa e para si prescrevem
sombras atormentadoras. Talvez tenha sido por isso que Santo Thomas decretou
que a gentileza é a rainha das virtudes. Mesmo sem caminhar pela trilha
religiosa, sabe-se do potencial otimista contido no dizer de São Francisco: é dando que se recebe. O avesso de certa
alienação santificadora nos convida pensar no significado do gesto
presenteador. Sim, fim de ano é época de pensar nas inefáveis “lembrancinhas”.
Confesso que fico encantado com o significado dessa palavra e com a dinâmica
internada na conjugação de letras que tanto remetem ao verbo “lembrar” como no
substantivo “lembrança” e assim arremato esta breve ponderação: que nossas
lembranças sejam símbolos esperançosos do que soubemos depurar. Já que entramos
nos jardins da polissemia, que os ajuizamentos aqui presentes, sejam lembrados
e depois esquecidos em festas
promissoras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário