quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

CONTANDO A VIDA 91

Uma briga de casal no busão pôs nosso cronista-historiador a filosofar sobre relacionamento amoroso, fidelidade, dominação, uau, que denso!

DILEMAS AMOROSOS ou teorema de um cachorro de dois donos?


José Carlos Sebe Bom Meihy

Dia desses estava em um ônibus urbano com olhar perdido na paisagem carioca quando, de repente, ouvi uma conversa que quebrou a poesia do cenário. Era um casal avaliando a relação. Apesar de jovens, os dois aparentavam fadiga de convívio e isso se traduzia nas faces contraídas, nas palavras iradas e no volume crescente das vozes. Aos poucos, meus companheiros de viagem foram concentrando atenção nos dois. Era inevitável. Num dado momento da “conversa”, o rapaz disse exaltado: olha, você parece cachorro de dois donos. Fiquei perplexo e dei leito ao rio de imagens que se distendiam em minha mente. Que será que o moço quis dizer? Bastou enunciar a dúvida para meu lado filósofo se fazer saci e sair pulando. Cachorro de dois donos?! Significaria que cão sem dono único padeceria de abandono? Dois proprietários não seriam melhores do que um só? Ou pelo contrário, dois donos significaria que nenhum deles tivesse responsabilidade direta? Foi fácil deslocar o raciocínio para outro pólo: e o cachorro? Devo dizer que primeiro fiz uma breve preleção sobre a sorte do animal – e por alguma razão o imaginei pequeno, tímido, dependente. Pois bem, o cãozinho seria vítima de disputas egoístas de dois marmanjos que usufruiriam do bicho de acordo com conveniências, mas sem encargo algum. E ao cachorrinho, coitado, restariam a consequências. A essa altura concluí que nessa equação todos seriam infelizes. Infeliz o cão certamente, mas também os donos que liberados do zelo direto, constante e exigente, não se aproveitariam do gozo da relação íntima gerada entre quem cuida e quem é cuidado e vice- versa. Em meio a tanta complexidade, repontou uma questão maior: o casal de jovens contendores. Afinal, que será que quis dizer o rapaz para a moça? Haveria alguma acusação, denúncia de traição? Mera disputa de propriedade de algum objeto? Tratei de traduzir as ponderações anteriores e pautá-las no caso dos dois contendores viajantes. Por certo, se estavam brigando, os moços não estavam felizes. A desdita de cada parte contaminava toda relação, pois o suposto “outro dono” também não haveria de estar bem. Haveria saída? Perguntemos de outra maneira: existiria condição de independência das partes, ou poderia ir cada um para um lado? E ficar bem sozinho seria viável. Ou, fatalmente, a relação triangulada ganhava sentido com a desvalia das partes? Por ironia, à essa altura me veio à cabeça outra frase, referente ao cachorro que não quer largar o osso. Sim, me ficou claro que o moço pretendia manter um domínio imperial sobre a moça. Senhor absoluto, queria expulsar o concorrente e a objetificação da “amada”, reduzida a animal de estimação, mostrava que a ela não restava alternativa alguma, pois ser de dois significaria ser de nenhum. Houve um momento em que olhei melhor para a moça que mesmo estando de costas para mim permitiu ver sua aparente submissão. Explico-me. Ele vociferava muito mais do que ela. Quase quieta, ela parecia ouvir ao mesmo tempo em que procedia a juízos pessoais. Isso, aliás, exponenciou a sagacidade da moça. Sim ela se sabia motivo de disputa. A tomada de consciência disso a fazia poderosa e anulava a passividade antes suposta. Outra vez me veio a cabeça mais um dizer afeito aos cães: a fidelidade. A tal fidelidade canina estava posta a prova. Precisei chegar a este ponto para entender que era o ciúme amoroso que tramava as situações. Foi quando comecei a tomar partido das coisas, ou das pessoas. Confesso algo constrangido que comecei a torcer para o rapaz. O jeito dele lutar, construir argumentos, se enrolar e se dispor a enfrentamentos era quase comovente. A garota, ardilosamente se mostrava como um coquetel composto de doses calculadas de submissão e autonomia. O outro dono, sujeito oculto por alguma elipse imaginária atuava pela ausência.
Não soube do fim deste caso. Cheguei ao ponto de destino antes mesmo de concluir meus ajuizamentos, mas recuperei o direito de pensar coisas mais simples. Paradoxalmente, um mero dizer popular pode abrigar tanta filosofia que a simplicidade das coisas chega a assustar 

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