sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

PAPIRO VIRTUAL 86

Roberto Rillo Bíscaro

Narrativas com tramas paralelas que em determinada altura se cruzam deixaram de ser novidade na literatura, cinema e TV há muito tempo. Em 1935, no Brasil, isso deve ter causado furor, daí o buchicho em torno de Caminhos Cruzados, de Érico Veríssimo, publicado naquele ano, que escandalizou, mas não deixou de ganhar prêmio.
O dinamismo da crônica psicologizada do autor gaúcho ainda funciona. A leitura prende e é fluida. Difícil caracterizar como romance um texto que não tem protagonista e nem ação com começo, meio e fim.
Trata-se de 4 ou 5 dias nas vidas de personagens de distintas classes sociais de Porto Alegre. Preocupação Modernista, a passagem do tempo é muito bem marcada, mas o espaço assume importância capital em Caminhos Cruzados; seja no que determina a posição social, seja na excelente recriação literária da capital gaúcha em seus diferentes loci, também personagem(ns), porque agente(s) no estado de espírito, na sensação de solidão urbana, na amplitude ou sufocamento que a metrópole multifacetada, mas anônima (ou não) proporciona/surrupia.   
O aspecto de crônica satírica de costumes é frequentemente entrecortado por fluxos de pensamento pelo narrador onisciente, que vive mudando de ponto de vista. Se Caminhos Cruzados não pode se gabar de profundidade psicológica/personagens complexas, pode se vangloriar de proporcionar leitura muito agradável, que se sustenta quase 80 anos após sua primeira publicação. Isso não é pouco na pós-modernidade, onde déficit de atenção parece ter se tornado nossa segunda natureza.
A cronicidade cobra seu pedágio, todavia, em personagens parecidos com figuras de papelão, como Noel, filhinho-de-papai sensível com sua arenga de contos de fada. Difícil imaginar como a independente Fernanda quereria um pamonha assim.
Mas, há que atentar que a visão liberal do narrador simpatiza mais com as personagens de menos calibre econômico. No ano da Intentona Comunista e inserido na segunda geração modernista – bastante critica das mazelas sociais – não admira Caminhos Cruzados ter levado a pecha de obra comuna.
Caminhos Cruzados devia ser muito mais pedido nos vestibulares do que algumas chatices Românticas sempre constantes das listas. Além de melhor, é muito mais gostoso de ler.

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