Ângelo Roldi quase perdeu a mão, mas a medicina lhe devolveu a confiança
por Mário Bittencour
Radicado desde menino em Eunápolis, cidade do extremo sul da Bahia, o capixaba Ângelo Leopoldo Roldi, 44 anos, sempre viveu para o trabalho numa cerâmica de produção de blocos de argila. “Não queria saber de outra coisa, era só trabalho, nem ligava para minha família direito”, disse ele, que é casado e pai de dois filhos pequenos. “Eu era muito bruto, estilo durão, tanto em casa quanto com meus funcionários.”
A vida de Ângelo mudaria na manhã de 22 de janeiro de 2009, quando um de seus 15 funcionários havia faltado ao trabalho e ele foi substituí-lo, pois “a produção de cerca de 200 mil blocos por mês não poderia parar”.
Ao tentar tirar uma pedra de uma máquina de moer argila, onde substituía o funcionário que faltou, ele teve a pele da mão esquerda arrancada, num processo que a medicina chama de “desenluvamento”, quando a pele da mão é arrancada como se fosse uma luva. Até uns números de telefone que tinha anotado ficaram na pele da mão, segundo relato de Ângelo.
Não há estatísticas sobre esse tipo de acidente no Brasil, porém, segundo o médico Luis Mário Bonfatti, cirurgião plástico especialista em mãos, da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, o caso de Ângelo Roldi é inédito no País. “O caso dele é excepcional, eu mesmo só vi casos no Brasil de desenluvamento parcial, com perda de dois a três dedos, nunca os cinco”, disse ele.
No acidente, Ângelo perdeu duas partes dos dedos mindinho, anelar, mediano e indicador e uma do polegar, de modo que ficaram apenas as partes dos dedos mais próximas da palma da mão. Ele relatou não ter sentido dor no momento, “apenas uma queimação”.
O caso raro na medicina brasileira exigiu a realização de um “enxerto de pele”, procedimento já utilizado para vários tipos de casos, porém muito delicado quando se trata de desenluvamento, que muitas vezes leva à amputação da mão, na altura do antebraço (entre o pulso e o cotovelo). No enxerto, geralmente a pele é retirada do abdome, para ser colocada na parte que falta.
Se Ângelo não esperava pelo acidente, muito menos pela forma como ocorreria o tratamento que permitiu que a mão dele não fosse amputada e ainda recuperasse boa parte dos movimentos. Com auxílio de um cirurgião plástico de Belo Horizonte, a equipe que o atendeu no único hospital público de Eunápolis costurou a mão dele dentro da barriga e assim ele ficou por 42 dias. Imagine uma pessoa vestida com um casaco e com a mão no bolso. Ângelo ficou nessa posição, só que com a mão costurada dentro do abdome.
Essa cirurgia foi feita pelo médico Hugo Serrano, que não desgrudava do celular para ouvir as orientações do cirurgião Leonardo Canhestro. “Não teríamos tempo para que o paciente fosse para Eunápolis nem ser transportado para Belo Horizonte. Optei por fazer o primeiro ato via imagem transmitida, e o doutor Hugo foi seguindo minhas orientações de como fazer as incisões no abdome e como implantaria esse membro para evitarmos a necrose dos músculos remanescentes da mão, muito importantes no sucesso do caso”, disse Canhestro.
Durante os 42 dias com o braço na barriga, Ângelo diz ter vivido momentos dramáticos, sobretudo à noite. Apesar de não sentir muita dor, mal se alimentava e para dormir era só “na base do cansaço”, segundo disse. No primeiro mês nem as necessidades fisiológicas o organismo dele conseguiu realizar. Por diversas vezes, pensou em tirar a própria vida, sentia vergonha da mão e só foi conseguir vê-la, de fato, com 80 dias após o acidente. No hospital, ele ficou 60 dias.
“Eu queria que amputassem logo a mão, não queria saber dela, mas os médicos tiveram todo cuidado comigo, me convenceram. Depois que fui para casa, quase não saia por vergonha de mostrar a mão, as pessoas ficavam olhando, cheguei a pensar até em me matar, quase tive depressão. Mas depois percebi que era tudo pensamento besta, vi na tevê exemplos de outras pessoas que superaram problemas piores que o meu e hoje vivem felizes”, disse Ângelo.
Após a retirada da mão de dentro da barriga, os médicos terminaram de encobri-la, costurando-a. E para cobrir o espaço da pele da barriga que foi para a mão, foi esticada a pele localizada pouco abaixo do peitoral e costurada no “pé da barriga”. “Eu fiquei corcunda por uns dias, mas depois a pele foi esticando e voltou ao normal”, contou.
Hoje, ele trabalha tirando argila, dirigindo uma retroescavadeira. Dos poucos traumas que ficaram do acidente, um deles é o de “trabalhar com gente”. “Prefiro trabalhar no meio do mato, coletando argila para a cerâmica. Encontrei minha felicidade com o trabalho, voltei também a dirigir carro e caminhão. Com essa minha mão, posso pegar vários objetos, ela ficou no formato que chamo de pinça. Se tivesse amputado, seria bem pior. Hoje dou mais valor à minha família e vivo mais a vida de verdade.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário