Nosso cronista-historiador aborda um tema muito presente em nossas vidas: a mentira. Até que ponto pode ser aceita? Convém refugiar-se num mundo de mentiras consoladoras ou é melhor enfrentar a dura realidade?
DOCES MENTIRAS ou o limite da realidade...
José Carlos Sebe Bom Meihy
Comecemos por
falar em “Papai Noel”. Na frieza da pedagogia moral, trata-se de uma mentira,
mas no reino da criatividade pode-se falar de encantamento, fascínio e até de
magia. Afinal, como atuar ou reagir em face de uma tradição como essa, tão
instalada e difundida? Não faltam pessoas que em nome da realidade vetam tal
referência alegando falsidade e fantasia prejudicial à boa formação das
crianças. O avesso dessa postura admite a imaginação que fecunda a
inventividade, alimenta a surpresa alegre dos presentes e promove bem estar. A
questão do limite entre o real e o imaginário, diga-se logo, se esgota na
intenção. Por que mentimos? Este é o ponto de curvatura entre o certo e o
errado. E o problema não é novo. Santo Agostinho, por exemplo, já dizia que há
oito formas de mentir e que a pecaminosa, única condenável, implica no embuste.
Sem intenção malévola não haveria delito, dizia o sábio.
Existe um
livro – verdadeira joia da moderna reflexão filosófica – que toca no tema de
maneira sensível. Escrito por um pensador atento ao sentido da conversação nos
dias de hoje, Frank Hamburger produziu um texto batizado como “About shit” que, aliás, possui tradução
em português (com o inconveniente título “Sobre
falar merda”). Entre os vários argumentos que evidenciam a falta de
conteúdo em nossas comunicações corriqueiras, Hamburger ressalta a naturalidade
das chamadas mentiras sociais,
aquelas explicações convenientes que damos para, ao mesmo tempo, nos desculpar
e polidamente não ofender os outros. Todos temos exemplos piedosos desse tipo
de procedimento e, creio, ninguém escapa deles. Seja por motivo pífio ou
importante, a cada momento estamos “dando desculpas”. Convém, contudo, não
simplificar muito o caso. Lembro-me de situações de doenças severas em família
onde os médicos, a favor de boas condutas, diziam para pacientes amados que
iriam melhorar e que presidiam esperanças alentadoras. A fim de prevenir os
demais parentes, contudo, a fatalidade de moléstias irreversíveis era
pontificada, levando a um teatro familiar de difícil equilíbrio. Por certo, a
situação é conflitante, pois o tema é jogado para o movediço território da
ética médica e da obediência derivada do discurso orientador.
O trajeto
pendular das exemplificações permite que sejam explorados também casos do dia a
dia, circunstâncias em que o mentir integra a naturalidade da rotina dos
contatos. E como mentimos, então! De tal maneira essa prática é inscrita em
nossos procedimentos que muitas pessoas nem notam que o fazemos, e sequer
registramos os disfarces. Em nível de julgamento existencial, devemos meditar
sobre essas condutas. Até onde é válido mentir? Qual a barreira entre a verdade,
o esquivar educado e o engano malicioso? Seria a nossa consciência árbitro
capaz de justificar tudo? Imagino um cristão católico no ato preparatório para
o confessionário, fazendo seus exames de consciência tendo que tratar dessa
questão. Certamente o processo seletivo entre o que é moral e o que não o é
coloca em cheque um paradoxo estranho: se mentimos piedosamente e se
disfarçamos a verdade em favor de atos generosos, em vez de condenação não
mereceríamos perdões e até prêmios? Mas como garantir que não estamos
contornando os fatos crus e criando uma outra realidade, falsa?
É lógico que o
chamado bom senso funciona como mediador entre o certo e o errado. Pensemos,
contudo que ele também pode operar como fator de acomodação das consciências.
Tendo certeza de que a mentira pode ser vício, convém saudar o alerta para que
não se perca a noção dos fatos. É certo que podemos viver uma realidade
postiça, mas não é melhor aceitar a fantasia do que se habituar à crueldade da
vida como ela é? Se não se tenta enganar paro mal, para a destruição ou
embuste, por que não pensar na suavidade das doces mentiras? Tudo, porém sem
perder a noção do embuste.
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