quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

CONTANDO A VIDA 98

Nosso cronista-historiador aborda um tema muito presente em nossas vidas: a mentira. Até que ponto pode ser aceita? Convém refugiar-se num mundo de mentiras consoladoras ou é melhor enfrentar a dura realidade? 

DOCES MENTIRAS ou o limite da realidade...

José Carlos Sebe Bom Meihy

Comecemos por falar em “Papai Noel”. Na frieza da pedagogia moral, trata-se de uma mentira, mas no reino da criatividade pode-se falar de encantamento, fascínio e até de magia. Afinal, como atuar ou reagir em face de uma tradição como essa, tão instalada e difundida? Não faltam pessoas que em nome da realidade vetam tal referência alegando falsidade e fantasia prejudicial à boa formação das crianças. O avesso dessa postura admite a imaginação que fecunda a inventividade, alimenta a surpresa alegre dos presentes e promove bem estar. A questão do limite entre o real e o imaginário, diga-se logo, se esgota na intenção. Por que mentimos? Este é o ponto de curvatura entre o certo e o errado. E o problema não é novo. Santo Agostinho, por exemplo, já dizia que há oito formas de mentir e que a pecaminosa, única condenável, implica no embuste. Sem intenção malévola não haveria delito, dizia o sábio.
Existe um livro – verdadeira joia da moderna reflexão filosófica – que toca no tema de maneira sensível. Escrito por um pensador atento ao sentido da conversação nos dias de hoje, Frank Hamburger produziu um texto batizado como “About shit” que, aliás, possui tradução em português (com o inconveniente título “Sobre falar merda”). Entre os vários argumentos que evidenciam a falta de conteúdo em nossas comunicações corriqueiras, Hamburger ressalta a naturalidade das chamadas mentiras sociais, aquelas explicações convenientes que damos para, ao mesmo tempo, nos desculpar e polidamente não ofender os outros. Todos temos exemplos piedosos desse tipo de procedimento e, creio, ninguém escapa deles. Seja por motivo pífio ou importante, a cada momento estamos “dando desculpas”. Convém, contudo, não simplificar muito o caso. Lembro-me de situações de doenças severas em família onde os médicos, a favor de boas condutas, diziam para pacientes amados que iriam melhorar e que presidiam esperanças alentadoras. A fim de prevenir os demais parentes, contudo, a fatalidade de moléstias irreversíveis era pontificada, levando a um teatro familiar de difícil equilíbrio. Por certo, a situação é conflitante, pois o tema é jogado para o movediço território da ética médica e da obediência derivada do discurso orientador.
O trajeto pendular das exemplificações permite que sejam explorados também casos do dia a dia, circunstâncias em que o mentir integra a naturalidade da rotina dos contatos. E como mentimos, então! De tal maneira essa prática é inscrita em nossos procedimentos que muitas pessoas nem notam que o fazemos, e sequer registramos os disfarces. Em nível de julgamento existencial, devemos meditar sobre essas condutas. Até onde é válido mentir? Qual a barreira entre a verdade, o esquivar educado e o engano malicioso? Seria a nossa consciência árbitro capaz de justificar tudo? Imagino um cristão católico no ato preparatório para o confessionário, fazendo seus exames de consciência tendo que tratar dessa questão. Certamente o processo seletivo entre o que é moral e o que não o é coloca em cheque um paradoxo estranho: se mentimos piedosamente e se disfarçamos a verdade em favor de atos generosos, em vez de condenação não mereceríamos perdões e até prêmios? Mas como garantir que não estamos contornando os fatos crus e criando uma outra realidade, falsa?
É lógico que o chamado bom senso funciona como mediador entre o certo e o errado. Pensemos, contudo que ele também pode operar como fator de acomodação das consciências. Tendo certeza de que a mentira pode ser vício, convém saudar o alerta para que não se perca a noção dos fatos. É certo que podemos viver uma realidade postiça, mas não é melhor aceitar a fantasia do que se habituar à crueldade da vida como ela é? Se não se tenta enganar paro mal, para a destruição ou embuste, por que não pensar na suavidade das doces mentiras? Tudo, porém sem perder a noção do embuste.

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