quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

CONTANDO A VIDA 99

Pobres madrastas, sempre com fama de más na nossa cultura. Mas, sabia que o Rei Roberto Carlos interpretou uma das poucas manifestações favoráveis a elas? Aprenda isso e mais lendo a interessante crônica musical do professor José Carlos Sebe Bom Meihy.  

MADRASTA: o olhar de Renato Teixeira.

José Carlos Sebe Bom Meihy

Ando fazendo pesquisas que podem parecer esquisitas. Creio que pouco tem sido escrito na nossa história sobre as figuras familiares. Ainda que mãe e pai repontem com maior frequência, pouco se fala de outros personagens que compõem tramas e dão sentido identitário aos participantes das comunidades parentais. Onde estão, por exemplo, os irmãos, primos, cunhados? Sobre as sogras – é válido reconhecer – Dicló exagerou em interpretações como Minha sogra parece sapatão”, “A vaca da minha sogra” ou o impagável “Bingo da minha sogra”, isso sem contar a irreverência do “Vendendo barato: muamba, sogra no Paraguai”. Preocupado com os outros familiares, busquei em nossa música popular (MPB) algumas indicações extraídas do que se chama tecnicamente “reserva de memória”. Vasculhando letras de música, dia desses me detive na figura sempre intrigante da madrasta. Como se sabe, poucos tipos sociais são tão estigmatizados como a mulher que se casa com o pai e supostamente se coloca no lugar da mãe falecida. E nem faltam contos e lendas infantis para garantir rejeições. Cinderelas e Brancas de Neve estão aí para provar o que também se repete em novelas, filmes, piadas. Esse procedimento, aliás, é um traço de nossa cultura que sabe caprichar na exclusão. Pois bem, falar de madrasta na MPB logo traz à mente a canção “Madrasta”, feita por Renato Teixeira e Beto Ruschell. Quem não se lembra de Roberto Carlos interpretando-a magistralmente no Festival de 1968? Mas muito mais do que isso, os dizeres oferecem uma virada na abordagem das relações madrasta/enteado. Pode-se afirmar que há uma verdadeira revolução na letra que se abre como oração “Minha madrasta bem-vinda na varanda/ onde me escondo dos medos/ na paz que ofereço a você”. Existe algo de singular nessa construção narrativa: com sutileza os autores não se referem à mãe ausente, e de tal maneira isso emociona que o final resume a grandiosidade afetiva dos narradores, abrigando afetivamente: “aqui é seu lugar”. Sem exagero, entre as mais sensíveis passagens do nosso cancioneiro está a frase “andaremos os três/ nós já podemos dizer ‘nossa casa’.
Sobremaneira valorizo esta “Madrasta” em contraste com outras que reafirmam os estereótipos correntes, como é o caso de “História de um órfão” de Ary Lobo onde o autor decreta “Ai minha mãe/ Meu primeiro santo amor/ Eu comparo minha mãe/ Com o anjo do senhor” e em continuidade, a trama narrativa dessa canção progride dizendo que num passeio pelo nordeste o autor  ouviu outro órfão se lamuriando “de sua mesquinha sorte”, pois morta a esposa, “papai precisou casar/ Porém a minha madrasta/ Vivia a me maltratar/ Quando eu falava em mamãe/ Ela pegava a brigar”, e, sem piedade decretava “Minha madrasta era má/ Tinha cruel coração/ Puxava minhas orelhas/ Me dava um beliscão/ Depois mandava papai/ Me bater de cinturão”. De certa forma, a relação conflituosa entre enteado e madrasta é algo instalado na cultura popular e isso pode ser depreendido por um dos contos mais difundidos de nossa tradição, como o registado por Câmara Cascudo. Dizia a lenda que havia um rico senhor que tendo perdido a esposa se casara em segunda núpcia. Má, a madrasta fingia-se boa em público, mas maltratava a filha do marido em surdina. De tanto sofrimento a menina, na ausência do pai, foi enterrada viva e em cima de sua tumba cresceu um denso capinzal. Intrigado, o pai mandou um colono carpir e assim que começou ouviu uma voz cantando “Capineiro de meu pai!/ Não me cortes os cabelos/  Minha mãe me penteou/ Minha madrasta me enterrou/ Pelo figo da figueira/ Que o passarinho picou/ Chô! passarinho!”. Apavorado, o capineiro chamou o pai que também ouviu a voz entoando a cantiga lúgubre. Assombrado, imediatamente começaram a cavar a terra até encontrar a menina ainda viva. Em prantos o pai abraçou-a, levando-a para casa. A madrasta ao ver a enteada correu mundo afora e dela nunca mais se soube. Com base nesta lenda, poetas como Jorge de Lima retomaram o mote que se repete, por exemplo, em “Nega Fulô” onde se lê “Ó Fulô! Ó Fulô!/ Vai botar para dormir/ esses meninos, Fulô!/ ‘minha mãe me penteou/ minha madrasta me enterrou/ pelos figos da figueira que o Sabiá beliscou’”. Não bastante Belchior e Raimundo Fagner escreveram uma canção que pode ser considerada antológica onde, depois de repetir o dizer da menina morta, perpetua o mito da madrasta má. Saúdo nosso letrista, Renato Teixeira que soube ser diverso e acolhedor. Certamente faço coro às madrastas que entoam versos de novos tempos familiares.    

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