Nosso cronista-historiador percorre as diferentes significações da palavra graça, desde a divina à capitalista, passando pelos derivados desgraça, ingratidão e grátis.
Interessantíssima a crônica de hoje!
QUAL É A SUA GRAÇA?
Interessantíssima a crônica de hoje!
QUAL É A SUA GRAÇA?
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Sempre fui fascinado pela palavra graça e pelos desdobramentos provocados por seu uso desde a origem.
A raiz latina – gratia – gerou um dos
conceitos capitais do Cristianismo, e, a tal ponto sua preponderância se
estende que a iniciação religiosa se dá pela graça divina que admite, pelo batismo, o ingresso da pessoa nas
fileiras da religião. Uma das decorrências mais interessantes desse ritual se nota
pela tradição coloquial onde, ao apresentar, à pessoa é perguntada “qual é a sua graça”. Assim, graça equivale ao nome que, por sua vez,
tem significados apelativos que vão além da estética vocabular ou da moda. Cada
nome remete a uma referência plena de significados e de graça. Como qualidade designativa, portanto, graça se relaciona a preceitos divinos. Santo Agostinho foi, dentre
tantos, o teólogo que mais se dedicou à elaboração do conceito. Ao definir graça como um estado da alma, afirmava
que equivaleria à pureza da alma, e seria condição para se alcançar o Paraíso,
livre de máculas. A apropriação cristã católica do termo fundamenta-se numa
passagem do Antigo Testamento onde Abrahão, ao acolher forasteiros dando-lhes
comida e abrigo, exigia em troca do ato o yadah,
ou seja, o louvor a Adonai, divindade suprema. Caso fosse negado o yadah, o beneficiado deveria, de alguma
maneira, pagar a ajuda. Não existia, pois a concepção de graça relacionada à gratidão, pelo menos no sentido atual. Outro
termo que decorreu dessa transformação, foi a palavra grátis ou gratificação.
Pode-se dizer que, com o advento da Revolução Industrial no século XVIII, entre
outras mudanças operadas no comportamento coletivo, se produziu o dinheiro como
valor de troca. A moeda, então, ganhou significado vital e passou a ditar
normas comerciais. Como instrumento de troca entre benefícios materializados em
mercadorias e com capacidade de agilizar o consumo, o pagamento implicou a
existência de favores que, por seu turno, traduziam a dispensa de pagamentos. A
gratificação, então, virou atestado
de generosidade, ritual de soberania de poderosos que, de alguma forma, podiam
dispensar o pagamento em espécie. O advento da sociedade de consumo demandou
transformação no conceito de graça
que passava assim a ter valor material, como se os poderosos conseguissem tomar
as benesses divinais.
Outra ocorrência importante na evolução do termo graça se deu com a institucionalização
do riso como forma pública de manifestação de prazer, júbilo ou alegria. Ser engraçado, alguém que domina a faculdade da graça, passou a dominar
também o mundo da arte de fazer rir, de divertir. Novamente, a disputa entre a
concepção sagrada de dar qualidade humana aos viventes se viu transformada na
alternativa de propiciar distração. É mesmo incrível a mudança de significados,
mas nada se equipara a duas decorrências da palavra mudada na
contemporaneidade: desgraça e ingratidão. A primeira, desgraça, muito mais do que remeter à
falta de graça indica a negação do
sentido puro, original da virtude, ou seja, seu avesso. Desgraçado é como se fosse amaldiçoado. Pior, porém, é o ingrato que negaria a intenção benevolente
emanada de alguém que tentou ajudar, favorecer ou simplesmente agradar. Por
paradoxal que seja, a ingratidão é
mais reconhecida do que a matriz que a determina. A negação do favor recebido,
ou mesmo a não consideração do esforço auxiliar, fere, machuca, gera mágoas que
doem. Retomando a questão, o ato ingrato, como sombra maldita, ressalta a luz
da graça e assim salienta a importância do reconhecimento.
Dimensão curiosa da idéia
de gratidão é a cadeia de outros conceitos gerados a partir da graça. A generosidade, a tolerância, a
aceitação do diferente são decorrências dessa condição. Admitir tais condições
permite perguntar em conclusão: mas, qual é mesmo sua graça?
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