quarta-feira, 18 de março de 2015

CONTANDO A VIDA 102

Nosso cronista-historiador percorre as diferentes significações da palavra graça, desde a divina à capitalista, passando pelos derivados desgraça, ingratidão e grátis. 
Interessantíssima a crônica de hoje!


QUAL É A SUA GRAÇA?

José Carlos Sebe Bom Meihy

Sempre fui fascinado pela palavra graça e pelos desdobramentos provocados por seu uso desde a origem. A raiz latina – gratia – gerou um dos conceitos capitais do Cristianismo, e, a tal ponto sua preponderância se estende que a iniciação religiosa se dá pela graça divina que admite, pelo batismo, o ingresso da pessoa nas fileiras da religião. Uma das decorrências mais interessantes desse ritual se nota pela tradição coloquial onde, ao apresentar, à pessoa é perguntada “qual é a sua graça”. Assim, graça equivale ao nome que, por sua vez, tem significados apelativos que vão além da estética vocabular ou da moda. Cada nome remete a uma referência plena de significados e de graça. Como qualidade designativa, portanto, graça se relaciona a preceitos divinos. Santo Agostinho foi, dentre tantos, o teólogo que mais se dedicou à elaboração do conceito. Ao definir graça como um estado da alma, afirmava que equivaleria à pureza da alma, e seria condição para se alcançar o Paraíso, livre de máculas. A apropriação cristã católica do termo fundamenta-se numa passagem do Antigo Testamento onde Abrahão, ao acolher forasteiros dando-lhes comida e abrigo, exigia em troca do ato o yadah, ou seja, o louvor a Adonai, divindade suprema. Caso fosse negado o yadah, o beneficiado deveria, de alguma maneira, pagar a ajuda. Não existia, pois a concepção de graça relacionada à gratidão, pelo menos no sentido atual. Outro termo que decorreu dessa transformação, foi a palavra grátis ou gratificação. Pode-se dizer que, com o advento da Revolução Industrial no século XVIII, entre outras mudanças operadas no comportamento coletivo, se produziu o dinheiro como valor de troca. A moeda, então, ganhou significado vital e passou a ditar normas comerciais. Como instrumento de troca entre benefícios materializados em mercadorias e com capacidade de agilizar o consumo, o pagamento implicou a existência de favores que, por seu turno, traduziam a dispensa de pagamentos. A gratificação, então, virou atestado de generosidade, ritual de soberania de poderosos que, de alguma forma, podiam dispensar o pagamento em espécie. O advento da sociedade de consumo demandou transformação no conceito de graça que passava assim a ter valor material, como se os poderosos conseguissem tomar as benesses divinais.
Outra ocorrência importante na evolução do termo graça se deu com a institucionalização do riso como forma pública de manifestação de prazer, júbilo ou alegria. Ser engraçado, alguém que domina a faculdade da graça, passou a dominar também o mundo da arte de fazer rir, de divertir. Novamente, a disputa entre a concepção sagrada de dar qualidade humana aos viventes se viu transformada na alternativa de propiciar distração. É mesmo incrível a mudança de significados, mas nada se equipara a duas decorrências da palavra mudada na contemporaneidade: desgraça e ingratidão. A primeira, desgraça, muito mais do que remeter à falta de graça indica a negação do sentido puro, original da virtude, ou seja, seu avesso. Desgraçado é como se fosse amaldiçoado. Pior, porém, é o ingrato que negaria a intenção benevolente emanada de alguém que tentou ajudar, favorecer ou simplesmente agradar. Por paradoxal que seja, a ingratidão é mais reconhecida do que a matriz que a determina. A negação do favor recebido, ou mesmo a não consideração do esforço auxiliar, fere, machuca, gera mágoas que doem. Retomando a questão, o ato ingrato, como sombra maldita, ressalta a luz da graça e assim salienta a importância do reconhecimento.
Dimensão curiosa da idéia de gratidão é a cadeia de outros conceitos gerados a partir da graça. A generosidade, a tolerância, a aceitação do diferente são decorrências dessa condição. Admitir tais condições permite perguntar em conclusão: mas, qual é mesmo sua graça? 

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