quarta-feira, 25 de março de 2015

CONTANDO A VIDA 103

Nosso historiador-cronista está mesmo filosófico esta temporada. Agora ele nos escreve sobre tempo, a cooptação do sono pela tecnologia e nos apresenta ideias de um teórico norte-americano chamado Jonathan Crary. 

É PROIBIDO DORMIR.

José Carlos Sebe Bom Meihy
Até que ponto o sistema global consegue definir nossas sensações individuais e coletivas? Mesmo sabendo das dificuldades de respostas objetivas, vale a pena exercitar alternativas possíveis. Paradoxalmente, é exatamente este limite que excita a imaginação e inflama reflexões atentas a pensar a espessura do tempo e as implicações essenciais que mexem sutilmente no comportamento humano. Jonathan Crary, ensaísta norte-americano, professor de Teoria da Arte Moderna em Columbia, NYC, tem proposto críticas contra o “olhar continuista”, acumulador de pressupostos firmados por superposições que se superam e indicam “alvos atualizadores”. Em três textos complementares, o autor propõe a retomada do chamado “olhar ativo”, atitude crítica e de resistência que busca furar a barreira do determinismo que decreta a fragmentação dos sujeitos, a pulverização da atenção humana que perde a centralidade dos focos, a falência da auto-imagem positiva e a relativização dos esquemas referenciais. A colagem trágica dessas condições resulta no que Crary chama de “industrialização dos regimes de contemplação”.
Engrossando a linhagem dos seguidores de Nietzsche, como Foucault, Debord e Deleuze, Crary desafia o entendimento das armadilhas temporais lineares e as contrapõem com noção de tempos múltiplos, variados, de convívios concomitantes. Por entender a transvariação de temporalidades – fato que implicaria a quebra das historizações lineares, horizontais e mecanicamente sucessivas – o autor indica a oportunidade da fratura das percepções evolutivas. Um dos mecanismos legitimadores do “etapismo geométrico” e sequencial seria o uso acrítico da tecnologia que desenvolveria sempre uma perspectiva triunfante, “presencista”, de fácil explicação e por isso mesmo inconsequente. Contra o sequencialismo automático propugna-se rompimentos capazes de fomentar invenções de novas perguntas ou “rupturas projetadas”, meditações que quebrariam a prática do desdobramento linear. Uma das consequencias mais notáveis dessa operação seria o comprometimento do simplismo casuísta que funcionaria na base de “causas e conseqüências”.

Em “Técnicas do observador – visão e modernidade no século XIX” o autor advoga a necessidade de olhares aptos à desnaturalização da lógica continuista. Como quem duvida, Crary valoriza a pergunta pertinente, motivadora de desafios e de mudanças. Circunscrevendo o avanço da tecnologia a partir do século XIX, o autor insiste na perda da crítica filosófica e humanística trocadas pela dominação da parafernália eletrônica e das máquinas. Em outro texto “Suspensões da Percepção – Atenção, espetáculo e cultura moderna”, Crary diagnostica o comportamento contemporâneo já identificando o peso da instalação dos aparelhos em nossa percepção cultural. Seguramente, contudo, em “Capitalismo tardio e dos fins do sono” o autor conclui sobre os impactos mais importantes desse processo refletido no coletivo. Qualificando o sono como a última reserva de exploração capitalista, a demonstração do ataque a esse recurso natural e biológico é feita por meio de mecanismos que investem na manutenção das pessoas acordadas. Não apenas para o consumo, mas também e principalmente para a produção temos sido convidados a não mais dormir. Criando a expressão 24/7, Crary agrava a tendência taylorista que investe na exploração racionalizada da produção. Segundo essa lógica, manter as pessoas acordadas é um recurso ideal para que funcione 24 horas por dia, 7 dias por semana como personagem que atua no sistema de forma coerente com o ideal do capitalismo. Os recursos usados pela sociedade para nos manter produtivos investem em práticas que anulam o ciclo do dia. Marcando o surgimento da luz elétrica como expediente para alongar o dia e multiplicar o tempo de produção e consumo, o autor demonstra os esforços para que nos mantenhamos despertados. E não se trata apenas de meios médicos, mas também psicológicos. A exemplificação de pessoas que de tal forma se vêem ligadas aos computadores e celulares e assim dependem das redes sociais é eloquente prova de como estamos ficando a cada dia mais limitados em termos de tempo para dormir. Dói perguntar, mas será que caminhamos para a proibição do sono, e o que é pior, dos sonhos? 

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