Nosso historiador-cronista está mesmo filosófico esta temporada. Agora ele nos escreve sobre tempo, a cooptação do sono pela tecnologia e nos apresenta ideias de um teórico norte-americano chamado Jonathan Crary.
É PROIBIDO DORMIR.
É PROIBIDO DORMIR.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Até que ponto o sistema global consegue definir nossas
sensações individuais e coletivas? Mesmo sabendo das dificuldades de respostas
objetivas, vale a pena exercitar alternativas possíveis. Paradoxalmente, é
exatamente este limite que excita a imaginação e inflama reflexões atentas a
pensar a espessura do tempo e as implicações essenciais que mexem sutilmente no
comportamento humano. Jonathan Crary, ensaísta norte-americano, professor de
Teoria da Arte Moderna em Columbia, NYC, tem proposto críticas contra o “olhar
continuista”, acumulador de pressupostos firmados por superposições que se
superam e indicam “alvos atualizadores”. Em três textos complementares, o autor
propõe a retomada do chamado “olhar ativo”, atitude crítica e de resistência
que busca furar a barreira do determinismo que decreta a fragmentação dos
sujeitos, a pulverização da atenção humana que perde a centralidade dos focos,
a falência da auto-imagem positiva e a relativização dos esquemas referenciais.
A colagem trágica dessas condições resulta no que Crary chama de
“industrialização dos regimes de contemplação”.
Engrossando a linhagem dos seguidores de Nietzsche, como
Foucault, Debord e Deleuze, Crary desafia o entendimento das armadilhas temporais
lineares e as contrapõem com noção de tempos múltiplos, variados, de convívios
concomitantes. Por entender a transvariação de temporalidades – fato que
implicaria a quebra das historizações lineares, horizontais e mecanicamente
sucessivas – o autor indica a oportunidade da fratura das percepções evolutivas.
Um dos mecanismos legitimadores do “etapismo geométrico” e sequencial seria o
uso acrítico da tecnologia que desenvolveria sempre uma perspectiva triunfante,
“presencista”, de fácil explicação e por isso mesmo inconsequente. Contra o
sequencialismo automático propugna-se rompimentos capazes de fomentar invenções
de novas perguntas ou “rupturas projetadas”, meditações que quebrariam a
prática do desdobramento linear. Uma das consequencias mais notáveis dessa
operação seria o comprometimento do simplismo casuísta que funcionaria na base
de “causas e conseqüências”.
Em “Técnicas do observador – visão e modernidade no século
XIX” o autor advoga a necessidade de olhares aptos à desnaturalização da lógica
continuista. Como quem duvida, Crary valoriza a pergunta pertinente, motivadora
de desafios e de mudanças. Circunscrevendo o avanço da tecnologia a partir do
século XIX, o autor insiste na perda da crítica filosófica e humanística trocadas
pela dominação da parafernália eletrônica e das máquinas. Em outro texto
“Suspensões da Percepção – Atenção, espetáculo e cultura moderna”, Crary
diagnostica o comportamento contemporâneo já identificando o peso da instalação
dos aparelhos em nossa percepção cultural. Seguramente, contudo, em
“Capitalismo tardio e dos fins do sono” o autor conclui sobre os impactos mais
importantes desse processo refletido no coletivo. Qualificando o sono como a
última reserva de exploração capitalista, a demonstração do ataque a esse
recurso natural e biológico é feita por meio de mecanismos que investem na
manutenção das pessoas acordadas. Não apenas para o consumo, mas também e
principalmente para a produção temos sido convidados a não mais dormir. Criando
a expressão 24/7, Crary agrava a tendência taylorista que investe na exploração
racionalizada da produção. Segundo essa lógica, manter as pessoas acordadas é
um recurso ideal para que funcione 24 horas por dia, 7 dias por semana como
personagem que atua no sistema de forma coerente com o ideal do capitalismo. Os
recursos usados pela sociedade para nos manter produtivos investem em práticas
que anulam o ciclo do dia. Marcando o surgimento da luz elétrica como
expediente para alongar o dia e multiplicar o tempo de produção e consumo, o
autor demonstra os esforços para que nos mantenhamos despertados. E não se
trata apenas de meios médicos, mas também psicológicos. A exemplificação de
pessoas que de tal forma se vêem ligadas aos computadores e celulares e assim
dependem das redes sociais é eloquente prova de como estamos ficando a cada dia
mais limitados em termos de tempo para dormir. Dói perguntar, mas será que
caminhamos para a proibição do sono, e o que é pior, dos sonhos?
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