terça-feira, 17 de março de 2015

NA ESCUTA

A descoberta de um novo sentido

Saiba mais sobre o implante coclear, procedimento que vem dando novas perspectivas a pessoas com deficiência auditiva

Por Carolina Oliveira (carollfts@gmail.com) e Vitor Andrade (vitortheandrade@gmail.com)


Em 2014, surgiram na internet vários vídeos de bebês, crianças e adultos com deficiência auditiva escutando pela primeira vez. Como se imagina,  reações de surpresa e emoção com o novo sentido dão o tom desses vídeos. E conforme mais experiências desse tipo enchem os olhos dos espectadores e as páginas do YouTube, a indagação aumenta: o que está possibilitando esse milagre? É algo novo no mercado? Como funciona? A resposta reside no implante coclear, equipamento que substitui a cóclea e permite que deficientes auditivos recuperem a sensibilidade aos sons. A reportagem da Jornalismo Júnior dá mais detalhes sobre essa técnica.
Invenção e chegada ao Brasil
O primeiro implante coclear no mundo foi realizado em 25 de fevereiro de 1957, e, por isso, tal data é considerada o Dia do Implante Coclear. Entretanto, a técnica só começou a se desenvolver mais na década de 1970, sobretudo nos Estados Unidos. No Brasil, o primeiro implante foi feito em 1977 pelo Dr. Pedro Mangabeira Albernarz, que trouxe o equipamento do exterior. À época, o procedimento ainda tinha um modelo primitivo, chamado monocanal, porque só transmitia uma frequência para o usuário, de modo que este não conseguia distinguir os sons, apenas ouvi-los de uma maneira bem limitada. Já em 1984, surgiu o modelo multicanal, que possibilitou uma distinção maior dos sons e fez o implante ser mais requisitado.
Até o governo Collor (1990-1992), o mercado brasileiro vivia sob uma série de medidas protecionistas, dificultando a importação de produtos estrangeiros, que se tornavam muito caros devido aos altos impostos cobrados por esse tipo de mercadoria. Tal restrição se aplicava também aos implantes cocleares.
Diante disso, um grupo foi criado no Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) com o objetivo de desenvolver um implante nacional: o FMUSP-1. Ele chegou a ser testado em 10 pacientes, até que o Plano Collor, implantado pelo presidente recém-eleito, derrubou as taxas protecionistas e abriu o mercado brasileiro a produtos externos. Assim, os implantes estrangeiros passaram a ser utilizados em detrimento do FMUSP-1 nacional, uma vez que eram de melhor qualidade. Atualmente, é usado apenas equipamento importado, e a maior empresa do ramo é uma marca australiana, seguida por uma austríaca e uma estadunidense.
Onde o implante coclear atua
(Arte: Carolina Oliveira/Jornalismo Júnior)
Como funciona o implante coclear?
Antes de entender o funcionamento do implante, é preciso entender como funciona nossa audição. Quando o som entra nos ouvidos, ele aciona o tímpano; o tímpano, por sua vez, faz vibrar os ossículos (chamados martelo, bigorna e estribo); esses ossículos, por fim, transmitem o som à cóclea. Todo esse processo serve para intensificar o som, fazendo com que a cóclea vibre cerca de 22 vezes mais do que a vibração inicial do tímpano. A função da cóclea é captar toda essa vibração e transformá-la em impulsos nervosos, que serão então levados ao cérebro pelo nervo auditivo. Uma vez que o som chega ao cérebro, nós estamos, de fato, ouvindo. Ou seja, a cóclea traduz o som, fazendo com que ele seja entendido pelo cérebro.
Pacientes com surdez total geralmente têm problemas na cóclea, fazendo com que ela não consiga captar a vibração do som, e, assim, não possa enviar os impulsos elétricos ao cérebro. E é aí que entra o implante coclear. Ele possui uma série de eletrodos que realizam o papel da cóclea defeituosa ao estimular eletricamente o nervo auditivo.
Deste modo, funciona de forma diferente dos aparelhos convencionais, já que estes apenas aumentam a vibração do som. Nesses casos, se a cóclea está com problemas, as ondas sonoras, ainda que mais potentes, não serão transformadas em impulsos elétricos e, dessa forma, não chegarão ao cérebro.
O implante coclear é composto de duas partes: a interna, que transforma o som em impulsos elétricos, e a externa, o processador de fala, composto por um microfone que capta os sons do ambiente e os envia para a parte interna por meio de uma antena de rádio. E para que todo esse aparato funcione, é necessário uma bateria, que dura cerca de dez horas e precisa ser constantemente recarregada, da mesma forma que qualquer aparelho eletrônico comum.
Procedimento cirúrgico
Segundo o Dr. Robson Koji Tsuji, otorrinolaringologista integrante do grupo de Implante Coclear do Hospital das Clínicas, a cirurgia consiste num corte atrás da orelha, abrindo caminho entre a pele e a cóclea para a instalação dos eletrodos. O procedimento dura em média duas horas, com anestesia geral e internação posterior de cerca de duas semanas. Porém, apenas um mês depois da cirurgia é que a unidade externa é acoplada. Só depois disso que o paciente poderá de fato ouvir.
Como todo procedimento cirúrgico, a colocação do implante também traz alguns riscos. De acordo com Koji, o maior deles é a possibilidade de dano ao nervo facial durante a cirurgia, o que prejudicaria os movimentos do rosto. “Mas tem pouquíssimos casos em que isso acontece”, reitera o otorrino.
Componentes do implante coclear
(Arte: Carolina Oliveira/Jornalismo Júnior)
Após a cirurgia, o paciente deve ser monitorado durante a vida toda. Nesse processo, é importante não só o acompanhamento clínico e a manutenção do aparelho implantado, mas também o apoio psicológico, tanto antes quanto depois da cirurgia. Em crianças, os psicólogos trabalham sobretudo com a família. “O psicólogo ajuda a família a aceitar a surdez, a entender como é o processo, como educar uma criança com surdez… Afinal, por mais que ela esteja usando implante, ela vai ter algumas limitações”, explica.
Já em pacientes adultos, é importante avaliar a expectativa, a adaptação ao aparelho. Segundo o doutor Koji, muitos pacientes que já ouviram antes relatam que o som é um pouco mais agudo que o normal. “Eles dizem que o som parece o Pato Donald falando”, brinca, “mas com o tempo o som fica normal, o cérebro vai se adaptando. As pessoas gostam muito do som do implante”.
Cobertura pelo SUS
O implante coclear é implantado apenas em hospitais terciários (grandes centros médicos), como o Hospital das Clínicas ou a Santa Casa. A pessoa com deficiência auditiva deve ser previamente avaliada por um clínico geral e encaminhada para um otorrino, que por sua vez levará a sua ficha para um dos hospitais que realizam o procedimento.
Atualmente, sete hospitais públicos fornecem a cirurgia no estado de São Paulo: HC, Santa Casa e UNIFESP na capital; Bauru, Campinas, Marília e Ribeirão Preto no interior. Também há outros centros espalhados pelo Brasil. O SUS arca com todos os custos da cirurgia – só o valor do aparelho é estimado em 45 mil reais. Desde 2010, convênios particulares também são obrigados por lei a subsidiar o implante.
Contudo, mesmo após conseguir a cirurgia, os usuários ainda encaram mais um problema: a reposição de partes, que não é atendida pelo SUS nem pelos convênios particulares. Apesar de ser um equipamento durável, peças externas do implante, como a bateria recarregável e o fio transmissor, podem se desgastar ou quebrar com o uso.
Preferência para crianças
Koji afirma que, embora qualquer paciente com problemas na cóclea possa se beneficiar do implante coclear, a adaptação é mais bem-sucedida em crianças. Isso porque o cérebro, nos primeiros anos de vida, tem mais facilidade em se adaptar a novas situações, o que é conhecido como plasticidade cerebral. “Se você nasce ouvindo, a área da audição no cérebro é estimulada. Em caso negativo, esse estímulo não é recebido, e portanto essa área não se desenvolve”, explica Koji. “Então depois não adianta fazer o ouvido funcionar, se o cérebro não está mais preparado para receber”.
Dr. Robson Koji Tsuji
Dr. Robson Koji Tsuji, membro do Grupo de Implante Coclear do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (Fonte: Cecília Bastos/USP Imagens)
Segundo o médico, o ideal é que o implante seja realizado no primeiro ano de vida, ou, no máximo, até três anos e meio. “É a idade limite para fazer com que a criança com deficiência auditiva se torne um adulto com audição normal”, diz. Por isso, pacientes nessa faixa etária têm preferência na fila para realização do procedimento, assim como adultos que adiquiriram problemas na audição durante a vida. Já adultos que nasceram com deficiência auditiva raramente são implantados. Sua adaptação, muito mais difícil, faz com que eles sejam considerados casos de risco.
Polêmicas e contradições do procedimento
Apesar de todos os inegáveis benefícios do implante, parte da comunidade que possui deficiência auditiva ainda é contra o uso do aparelho. Entre os argumentos contrários, está o fato de que estes não devem ser vistos como deficientes, mas sim como um grupo que usa um tipo diferente de comunicação. Enquanto algumas pessoas se comunicam auxiliadas pela audição, os que possuem deficiência auditiva o fazem por sinais. Deste modo, isso não caracterizaria um problema que, portanto, não precisaria ser tratado.
Tal discussão é abordada no documentário “Som e Fúria”, no qual os pais de duas crianças enfrentam o dilema de operar ou não seus filhos. O documentário pode ser assistido gratuitamente neste link. Koji afirma que a relutância geralmente vem de famílias em que os pais da criança também possuem deficiência auditiva. “Para eles é uma espécie de cultura, muitos casam entre si, têm as próprias comunidades, têm suas escolas especiais”. O médico diz que o implante já foi muito recriminado no passado, mas que isso vem diminuindo nos últimos anos. “A gente sempre teve a posição de não forçar: se os pais não querem, não fazemos. Mas até hoje foram poucos casos que optaram não usar o implante”.

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