Nosso historiador-cronista sempre dá importância aos sonhos dos colaboradores em seus trabalhos de História Oral. Na crônica de hoje, ele escreve sobre a validade acadêmica de se atentar para o conteúdo onírico, além de apontar a maciça presença sonhadora em nossa cultura, citando Bandeira, Drummond e até enredo oitentista da Vila Isabel.
O SONHO ENTRE O POÉTICO E O SOCIOLÓGICO.
O SONHO ENTRE O POÉTICO E O SOCIOLÓGICO.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Percorrendo a História, através
dos tempos, o sonho tem sido um tema constante, inquietante e de intermitente
saliência. É certo que sem ele ninguém vive e nenhuma sociedade o prescinde, ainda
que seu reconhecimento como fenômeno social padeça de apropriações variadas.
Sutil onipresença, apesar de titubeante em termos de consideração e prestígio
objetivo, a realidade do sonho é sempre questionada tornando-se, na maioria das
vezes, divisor d’água entre a crença, o senso comum e a ciência. Se o popular o
implica sem muitas barreiras, o religioso o arrola como dogma, o científico
exige critérios analíticos, métodos exegéticos e afastamento das interpretações
corriqueiras que também afetam sua aceitação como matéria de estudo.
Frequente nas conversas
diárias, nos consultórios de analistas, em círculos privados ou de estudos e em
leituras variadas, o entendimento do sonho como fato passível de análise
crítica padece de crivos múltiplos e sua apropriação como matéria de
especialistas tem sido tema avassalado pelo debate médico-psicológico. Outras
possibilidades, como o trato de palpite definido pela tradição oral, mensagem
religiosa, metáforas de falas cordiais, ficam, quase sempre, à deriva de considerações
equivocadamente tidas como “sérias” porque quase exclusivamente decorrentes de
saberes dominantes. Dado o poder e a concentração da análise dos sonhos pela
ordem médica em geral, não obstante, equacionar debates sobre o sonho em
diferentes manifestações e níveis da cultura, situá-lo de maneira a promover
alternativas estruturadas em moldes do conhecimento acadêmico é matéria, quase
sempre, arriscada.
Substância invariavelmente
dependente da interpretação, os dilemas caracterizadores do sonho enquanto
discurso se mostram mais ligados ao plano do subjetivo do que propriamente da
objetividade. Ainda que este pressuposto seja discutível, não há como recusar a
aceitação de que o sonho é tema permanente no convívio cotidiano em todos os
quadrantes, nas várias camadas sociais, etárias, étnicas. A par da insistente
presença no discurso urbano – que dada à composição das relações permite o
dimensionamento social das narrativas –, a Cultura Popular ou de Massas, a
Literatura em seus diversos gêneros, a Pintura, a Ópera, os quadrinhos, têm
investido com fartura na temática onírica moldando discursos que clamam por
definições cada vez mais específicas. Analisando o cancioneiro nacional por
meio da poética temática, é impressionante como as manifestações oníricas
ganham atenções. Pode-se mesmo dizer que há uma tendência “sonhográfica”
permeando o imaginário da cultura nacional. Vejamos alguns exemplos, a fim de
motivar reflexões e é bom começar por Manuel Bandeira que versejou “Sonhei ter
sonhado/ que havia sonhado/ Em sonho lembrei-me/ de um sonho passado: o ter
sonhado/ que estava sonhando”. O jogo de espelhos é espetacular e a colocação
de um sonho dentro do outro desorganiza a lógica racional do leitor.
Curiosamente a proposta de Bandeira se reproduz na poética de Carlos Drummond
de Andrade colorindo a temática de maneira desafiadora “Sonhei que estava
sonhando/ e no meu sonho havia/ um outro sonho esculpido/ os três sonhos
superpostos/ dir-se-iam apenas elas/ de uma infindável cadeia/ de mitos
organizados/ em derredor de um pobre eu/ Eu que, mal de mim! Sonhava”. Mais do
que simplesmente alargar a temática, repetindo o mote matriz, Drummond arrasta
a questão para o espaço mítico da memória coletiva. Na mesma linha, Martinho da
Vila (juntamente com os parceiros Rodolfo e Graúna) musicaram o popular “sonhei
que estava sonhando/ um sonho sonhado” O sonho de um sonho magnetizado/ As
mentes abertas sem bicos calados/ Juventude alerta os seres alados/ Sonho meu
eu sonhava que sonhava/ Sonhei que eu era um rei que reinava/ Como um ser comum
era um por milhares/ Milhares por um”. O que fascina neste giro de retomadas é
a apropriação do sonho como atalho para o entendimento da relação indivíduo e
história. Um sonho dentro do outro, o eu pessoal ganha foros de
importância na medida em que no devaneio onírico os sonhadores se tornam o
centro do universo e ganham eles o direito de ver a história em perspectiva, um
sonho dentro do outro. Curioso: num instante em que tantos insistem em nos
manter acordados, como produtores de mercadorias ou consumidores de bens, o
inconsciente trai tudo e nos permite sonhar.
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