quarta-feira, 6 de maio de 2015

CONTANDO A VIDA 109

Nosso historiador-cronista sempre dá importância aos sonhos dos colaboradores em seus trabalhos de História Oral. Na crônica de hoje, ele escreve sobre a validade acadêmica de se atentar para o conteúdo onírico, além de apontar a maciça presença sonhadora em nossa cultura, citando Bandeira, Drummond e até enredo oitentista da Vila Isabel.


O SONHO ENTRE O POÉTICO E O SOCIOLÓGICO.

José Carlos Sebe Bom Meihy
Percorrendo a História, através dos tempos, o sonho tem sido um tema constante, inquietante e de intermitente saliência. É certo que sem ele ninguém vive e nenhuma sociedade o prescinde, ainda que seu reconhecimento como fenômeno social padeça de apropriações variadas. Sutil onipresença, apesar de titubeante em termos de consideração e prestígio objetivo, a realidade do sonho é sempre questionada tornando-se, na maioria das vezes, divisor d’água entre a crença, o senso comum e a ciência. Se o popular o implica sem muitas barreiras, o religioso o arrola como dogma, o científico exige critérios analíticos, métodos exegéticos e afastamento das interpretações corriqueiras que também afetam sua aceitação como matéria de estudo.
Frequente nas conversas diárias, nos consultórios de analistas, em círculos privados ou de estudos e em leituras variadas, o entendimento do sonho como fato passível de análise crítica padece de crivos múltiplos e sua apropriação como matéria de especialistas tem sido tema avassalado pelo debate médico-psicológico. Outras possibilidades, como o trato de palpite definido pela tradição oral, mensagem religiosa, metáforas de falas cordiais, ficam, quase sempre, à deriva de considerações equivocadamente tidas como “sérias” porque quase exclusivamente decorrentes de saberes dominantes. Dado o poder e a concentração da análise dos sonhos pela ordem médica em geral, não obstante, equacionar debates sobre o sonho em diferentes manifestações e níveis da cultura, situá-lo de maneira a promover alternativas estruturadas em moldes do conhecimento acadêmico é matéria, quase sempre, arriscada.

Substância invariavelmente dependente da interpretação, os dilemas caracterizadores do sonho enquanto discurso se mostram mais ligados ao plano do subjetivo do que propriamente da objetividade. Ainda que este pressuposto seja discutível, não há como recusar a aceitação de que o sonho é tema permanente no convívio cotidiano em todos os quadrantes, nas várias camadas sociais, etárias, étnicas. A par da insistente presença no discurso urbano – que dada à composição das relações permite o dimensionamento social das narrativas –, a Cultura Popular ou de Massas, a Literatura em seus diversos gêneros, a Pintura, a Ópera, os quadrinhos, têm investido com fartura na temática onírica moldando discursos que clamam por definições cada vez mais específicas. Analisando o cancioneiro nacional por meio da poética temática, é impressionante como as manifestações oníricas ganham atenções. Pode-se mesmo dizer que há uma tendência “sonhográfica” permeando o imaginário da cultura nacional. Vejamos alguns exemplos, a fim de motivar reflexões e é bom começar por Manuel Bandeira que versejou “Sonhei ter sonhado/ que havia sonhado/ Em sonho lembrei-me/ de um sonho passado: o ter sonhado/ que estava sonhando”. O jogo de espelhos é espetacular e a colocação de um sonho dentro do outro desorganiza a lógica racional do leitor. Curiosamente a proposta de Bandeira se reproduz na poética de Carlos Drummond de Andrade colorindo a temática de maneira desafiadora “Sonhei que estava sonhando/ e no meu sonho havia/ um outro sonho esculpido/ os três sonhos superpostos/ dir-se-iam apenas elas/ de uma infindável cadeia/ de mitos organizados/ em derredor de um pobre eu/ Eu que, mal de mim! Sonhava”. Mais do que simplesmente alargar a temática, repetindo o mote matriz, Drummond arrasta a questão para o espaço mítico da memória coletiva. Na mesma linha, Martinho da Vila (juntamente com os parceiros Rodolfo e Graúna) musicaram o popular “sonhei que estava sonhando/ um sonho sonhado” O sonho de um sonho magnetizado/ As mentes abertas sem bicos calados/ Juventude alerta os seres alados/ Sonho meu eu sonhava que sonhava/ Sonhei que eu era um rei que reinava/ Como um ser comum era um por milhares/ Milhares por um”. O que fascina neste giro de retomadas é a apropriação do sonho como atalho para o entendimento da relação indivíduo e história. Um sonho dentro do outro, o eu pessoal ganha foros de importância na medida em que no devaneio onírico os sonhadores se tornam o centro do universo e ganham eles o direito de ver a história em perspectiva, um sonho dentro do outro. Curioso: num instante em que tantos insistem em nos manter acordados, como produtores de mercadorias ou consumidores de bens, o inconsciente trai tudo e nos permite sonhar.

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