quarta-feira, 27 de maio de 2015

CONTANDO A VIDA 112

Nosso historiador-cronista (que está na Vejinha desta semana, olha que poder!) sempre foi muito trabalhador, mas teve uma epifania durante uma discussão sobre produção acadêmica. Publicar ou perecer tem sido o mote de tantos obcecados com rechear o Lattes. Mas, será que a cigarra da fábula tem algo a ensinar? E nosso Monteiro Lobato não contribuiu sobremaneira para uma conclusão mais humanitária do clássico de La Fontaine? 
e qual lição o Professor Sebe tirou dos estudos sobre cigarras?
Delicie-se lendo a deliciosa crônica de hoje. 


SOBRE FORMIGAS E CIGARRAS. SOBRE LOBATO TAMBÉM.

José Carlos Sebe Bom Meihy

De repente, como estalo, sem mais, lembrei-me de Lobato. Foi uma sensação forte. Fortíssima, eu diria. E complicada. Não sei dizer porque, mas em meio a um debate interminável sobre produtividade acadêmica, perdido em argumentos intelectuais sobre publicar ou não, primeiro me veio à cabeça a fábula de La Fontaine sobre a Cigarra e a Formiga. Decorrência imediata, porém, progredi para a retomada feita pelo nosso escritor querido que, de maneira intrigante, apresentava para a mesma fábula, duas versões complementares e polêmicas: uma coerente com a fonte francesa, apontando a moral da história construída a partir da prudência. Outra, mantendo o mesmo mote narrativo, porém, alertando para um epílogo diverso, caracterizado pela grandiosidade do acolhimento à Cigarra desvalida.
Lembremo-nos da trama proposta como lição que se encerra com mais uma clássica moral da história. Baseada na tradição, a Cigarra ia cantando leve, livre e solta num dia quente de verão. Cantarolava quando se viu frente a uma Formiga trabalhando atrozmente e então, toda pomposa, a cantante galanteadora que tocava seu violão interrompeu a apresentação espontânea para desafiar a operária e foi dizendo “dona Formiga, venha e cante comigo, em vez de trabalhar tão arduamente, vamo-nos divertir". Sem se distrair a Formiga respondeu negativamente, afirmando que tinha que ir em frente, que precisava guardar comida para o inclemente inverno. Obsessiva, a Formiga deixou a Cigarra cantando sozinha. Convém lembrar que os argumentos da saltitante Cigarra contrastavam com o alerta ajuizado e aflito da interlocutora que se mantinha dizendo da distância do inverno, da garantia da fartura de alimentos e do prazer de cantar. Alheia à delícia e ao gozo musical, atenta e obstinada, a Formiga persistia em sua labuta até que, por fim, o tempo passou e o inverno se impôs rigoroso. Diz a lenda que a Cigarra, então em apuros, fustigada e com o frio e fome, sem alternativas, chegou à casa da Formiga implorando abrigo. Soberana a Formiga bradou "se você tivesse ouvido o meu conselho no verão, não estaria agora tão desesperada. Preferiu cantar e tocar violão?! Pois agora dance!". A genialidade de Lobato, porém, apresentou uma esperta desviada com ares de negociação filosófica. Dado o enredo conhecido, a Formiga teria, apesar de tudo, tomado outra atitude e em vez do “bem feito, quem mandou”, teria aberto o lar e recebido com simpatia a desvalida Cigarra. Confortada a Cigarra, refeita e agradecida, presume-se que teria aprendido a lição. 
Como mecanismo de fuga da situação que discutia a produtividade acadêmica, dei asas à imaginação e cismei que sabia mais sobre Formigas do que sobre Cigarras. Saí do encontro inconformado e, já em casa, dei vazão a curiosidade. Devo dizer antes que sou fascinado pelo canto das Cigarras. Entre as melhores lembranças que tenho de minha vida no interior, os sons eletrizantes das Cigarras, até hoje, enchem meu imaginário e me tornam cativo de memórias inegociáveis. O canto das cigarras situa-se entre minhas saudades favoritas. Lendo, aprendi que o som produzido pelas Cigarras se relaciona com a reprodução. Fecundadas, elas põem ovos e depois, como que vazias, silenciam e morrem. Sem vidas, suas larvas drenam terra abaixo, e por 18 anos permanecem latentes até que se metamorfoseiam para novamente viver. Revitalizadas, estridentes, saem e cantam. Cantam e cruzam repetindo o ciclo que as eternizam para, depois de mais ovos, morrerem secas no tronco de alguma árvore. Com meus botões perguntei: por que não sabemos mais das Cigarras? Que faria com que as informações sobre as Formigas fossem mais divulgadas e até propaladas como metáfora do trabalho? E resolvi caminhar por esta senda que me levou, por fim, a compreender melhor a engrenagem do capitalismo que nos obriga a preterir o canto ao exercício da produtividade. A moral da minha reflexão levou-me a outra triste constatação: se soubesse da beleza do ciclo vital das Cigarras, passaria a cantar mais e trabalhar menos. 

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