Roberto Rillo Bíscaro
Não invejo a profissão de tradutor: árduo
verter uma cultura pra outra. Traduzir vai muito além de encontrar
correspondentes pra símbolos gráficos. Acabo de ler o alentado romance japonês 細雪 ou Sasameyuki, serializado entre 1943-48. Li a tradução
inglesa, de Edward Seindensticker, que chamou a obra de Junichiro Tanizaki de
The Makioka Sisters. Incorporar a narrativa irônica e saudosista à tradição chekoviana
das irmãs chorosas por um passado de glórias foi o máximo que o profissional
conseguiu fazer com o intraduzível jogo de palavras/ideias/imagens/conceitos
existente entre Sasameyuki e a protagonista Yukiko. Yuki significa neve ou
sortuda (coisa que Yukiko definitivamente não é). Sasameyuki seria algo como
neve rala ou leve, mas também tem a ver com a confusão entre neve e flores de
cerejeiras, altamente simbólicas no livro e no Japão. Flores e neve caem,
derretem, sendo transitórias, e, efemeridade e mudança (pra pior) são
leitmotivs desse livro falsamente simples.
Os Makioka haviam sido comerciantes classe-média-alta de
Osaka, mas a crise de 29 ou a dissipação paterna (ou ambos) acabaram com a
bonança e entre meados dos anos 30 e início dos 40 – quando a narrativa se
desenvolve – a família tenta manter a aparência e a “tradição” ao mesmo tempo
em que viaja em vagões de terceira-classe ou passa roupa íntima de irmã a
outra. A despeito do status social descendente, os Makioka haviam sido
rigorosos demais ao selecionar marido pra Yukiko. Os anos descritos no meio
milhar de páginas têm como tema central arrumar consorte pra reticente
penúltima irmã do quarteto.
Tsuruko e Sachiko são casadas, Yukiko e Taeko solteiras.
Pela rígida convenção familiar japonesa, as 2 últimas deveriam viver na “casa
principal” com Tsuruko, mas preferem a paz suburbana de Ashyia, optando
permanecer com a permissiva (indolente) Sachiko. Enquanto Yukiko não
desencalhar, Taeko não pode casar, mas a mais jovem das manas representa o
afrouxamento e a ocidentalização das tradições, então, o negócio pega fogo.
Tanizaki entope a narrativa de toda sorte de detalhes: nomes
de filme e remédios, cartas, sem falar na pormenorizada inspeção de cada
motivação possível pra mais mínima ação. Não é literatura do fluxo da
consciência, mas temos mapas mentais detalhados das personagens, que não vivem
quase nenhuma situação extraordinária, salvo uma enchente e um tufão. Também
não se trata de um esmiuçar woolfiano de páginas a fio. The Makioka Sisters tem
muito diálogo e as investigações mentais são profundas, mas sucintas. O quase
asfixiante superávit de detalhes dum cotidiano “comum”, portanto ritualizado e
repetitivo, é que justamente desidealiza, ironiza e enche de decadentes
defeitos todas as personagens, até mesmo a pequena Etsuko, menina neurótica.
A técnica de Tanizaki foi representar tradição e decadência
mediante sucessão de fatos parecidos, mas cada vez mais desoladores, piores,
intensos (ou não). As doenças se agravam; as visitas aos cerejais vão ocorrendo
com cada vez menos gente; os miais (encontros
entre potenciais marido e mulher) tornam-se mais e mais constrangedores e
humilhantes.
Pra quem curte/necessita de paralelo com o Ocidente pra se
situar, digamos que Junichiro Tanizaki seja uma Jane Austen mais do mal ainda
(quem crê que La Austen era dulce e
boazinha precisa trocar de laquê; tem produto químico te deixando lesada!). As
negociações pras tentativas de casamento são descritas em termos acintosamente
dinheiristas e envolvem até mesmo detetives investigando condutas familiares. E
se a oração de abertura de Pride & Prejudice é minha favorita na
literatura, a final de The Makioka Sisters tem tudo pra ser a predileta nessa
posição: “Yukiko’s diarrhea persisted through the twenty-sixth, and was a
problem on the train to Tokyo”. Não retornei a ser um jovem que se encanta com escatologia
barata; acontece que depois de 3 tomos do cotidianeidade minuciosa e irônica, tal
comentário sobre a protagonista, na véspera dum dia que seria de se esperar
fosse especial, e com ela terminar um romance é muito forte e genial. Ri alto e
quero ler mais coisas de Junichiro.
Existe tradução brasileira, chamada As Irmãs Makioka,
lançada pela Editora Estação Liberdade. Também achei uma professora da USP
falando sobre a obra de Tanizaki e especificamente sobre esse grande romance.
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