sexta-feira, 22 de maio de 2015

PAPIRO VIRTUAL 93


Roberto Rillo Bíscaro
Não invejo a profissão de tradutor: árduo verter uma cultura pra outra. Traduzir vai muito além de encontrar correspondentes pra símbolos gráficos. Acabo de ler o alentado romance japonês 細雪 ou Sasameyuki, serializado entre 1943-48. Li a tradução inglesa, de Edward Seindensticker, que chamou a obra de Junichiro Tanizaki de The Makioka Sisters. Incorporar a narrativa irônica e saudosista à tradição chekoviana das irmãs chorosas por um passado de glórias foi o máximo que o profissional conseguiu fazer com o intraduzível jogo de palavras/ideias/imagens/conceitos existente entre Sasameyuki e a protagonista Yukiko. Yuki significa neve ou sortuda (coisa que Yukiko definitivamente não é). Sasameyuki seria algo como neve rala ou leve, mas também tem a ver com a confusão entre neve e flores de cerejeiras, altamente simbólicas no livro e no Japão. Flores e neve caem, derretem, sendo transitórias, e, efemeridade e mudança (pra pior) são leitmotivs desse livro falsamente simples.
Os Makioka haviam sido comerciantes classe-média-alta de Osaka, mas a crise de 29 ou a dissipação paterna (ou ambos) acabaram com a bonança e entre meados dos anos 30 e início dos 40 – quando a narrativa se desenvolve – a família tenta manter a aparência e a “tradição” ao mesmo tempo em que viaja em vagões de terceira-classe ou passa roupa íntima de irmã a outra. A despeito do status social descendente, os Makioka haviam sido rigorosos demais ao selecionar marido pra Yukiko. Os anos descritos no meio milhar de páginas têm como tema central arrumar consorte pra reticente penúltima irmã do quarteto.
Tsuruko e Sachiko são casadas, Yukiko e Taeko solteiras. Pela rígida convenção familiar japonesa, as 2 últimas deveriam viver na “casa principal” com Tsuruko, mas preferem a paz suburbana de Ashyia, optando permanecer com a permissiva (indolente) Sachiko. Enquanto Yukiko não desencalhar, Taeko não pode casar, mas a mais jovem das manas representa o afrouxamento e a ocidentalização das tradições, então, o negócio pega fogo.
Tanizaki entope a narrativa de toda sorte de detalhes: nomes de filme e remédios, cartas, sem falar na pormenorizada inspeção de cada motivação possível pra mais mínima ação. Não é literatura do fluxo da consciência, mas temos mapas mentais detalhados das personagens, que não vivem quase nenhuma situação extraordinária, salvo uma enchente e um tufão. Também não se trata de um esmiuçar woolfiano de páginas a fio. The Makioka Sisters tem muito diálogo e as investigações mentais são profundas, mas sucintas. O quase asfixiante superávit de detalhes dum cotidiano “comum”, portanto ritualizado e repetitivo, é que justamente desidealiza, ironiza e enche de decadentes defeitos todas as personagens, até mesmo a pequena Etsuko, menina neurótica. 
A técnica de Tanizaki foi representar tradição e decadência mediante sucessão de fatos parecidos, mas cada vez mais desoladores, piores, intensos (ou não). As doenças se agravam; as visitas aos cerejais vão ocorrendo com cada vez menos gente; os miais (encontros entre potenciais marido e mulher) tornam-se mais e mais constrangedores e humilhantes.
Pra quem curte/necessita de paralelo com o Ocidente pra se situar, digamos que Junichiro Tanizaki seja uma Jane Austen mais do mal ainda (quem crê que La Austen era dulce e boazinha precisa trocar de laquê; tem produto químico te deixando lesada!). As negociações pras tentativas de casamento são descritas em termos acintosamente dinheiristas e envolvem até mesmo detetives investigando condutas familiares. E se a oração de abertura de Pride & Prejudice é minha favorita na literatura, a final de The Makioka Sisters tem tudo pra ser a predileta nessa posição: “Yukiko’s diarrhea persisted through the twenty-sixth, and was a problem on the train to Tokyo”. Não retornei a ser um jovem que se encanta com escatologia barata; acontece que depois de 3 tomos do cotidianeidade minuciosa e irônica, tal comentário sobre a protagonista, na véspera dum dia que seria de se esperar fosse especial, e com ela terminar um romance é muito forte e genial. Ri alto e quero ler mais coisas de Junichiro.
Existe tradução brasileira, chamada As Irmãs Makioka, lançada pela Editora Estação Liberdade. Também achei uma professora da USP falando sobre a obra de Tanizaki e especificamente sobre esse grande romance. 

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