O que aconteceu quando nosso historiador-cronista quis conhecer a Sierra Maestra bem no período macabro da ditadura militar brasileira? Numa de suas crônicas mais brilhantes, o Professor Sebe aborda com leveza temas muito importantes e ainda nos faz sorrir.
SIERRA MAESTRA: FRAGMENTO DE UMA VIAGEM QUE NÃO FIZ...
SIERRA MAESTRA: FRAGMENTO DE UMA VIAGEM QUE NÃO FIZ...
José
Carlos Sebe Bom Meihy
O verão de 1976 foi muito quente, em coerência perfeita com
nosso sufocante clima político daquele então. Sem pudores, a ditadura militar não
escondia suas garras já desgastadas, mas sempre expostas, exigindo dos
contrários, “ações subversivas”. Por aqueles dias, o forjado milagre econômico
se desmentia em abusivo aumento de taxas que, junto com o problema
internacional do petróleo, anunciava o fracasso dos generais. Latente, os
dirigentes prevendo a agonia do regime, sob o comando de Geisel, propunham uma “abertura
lenta, gradual e segura”. Fortalecida, a oposição desde 1974 se via animada com
vitória de mais de 53% dos votos populares. Na aparente quietude do ideal democrático,
a máscara autoritária se desafazia. Mas, isso era pouco para minhas aspirações
juvenis. Muitos – hoje senhores feitos – guardam façanhas incríveis de dribles
dados nas divididas daquele jogo macabro. Eu tenho uma história para contar e o
faço com olhos amanhecidos do menino sonhador que fui um dia.
Minha fantasia era conhecer Sierra Maestra, cenário do
epílogo da Revolução Cubana de 1959. A cultivada viagem equivalia ao avesso de
utopias reprimidas e alçava a condição de redesenho libertário, peças soltas no
espaço da repressão bandida. No ano anterior, em 1975, o jornalista Vladimir
Herzog fora assassinado nas dependências do DOI-Codi em São Paulo e em janeiro
daquele 1976, Manuel Fiel Filho, operário, fora executado em semelhantes
circunstâncias. Era demais para mim... Precisava de Cuba... Curioso, li tudo
que achei sobre Sierra Maestra. Li, vi filmes, coletei notícias, reuni relatos
e romances sobre a área. Todas as dificuldades se me impunham e precisei
inclusive desenvolver estratégia para esquadrinhar os mapas separados da
biblioteca, como se fosse dar aulas sobre geografia da América Latina Caribenha.
Cronópio que sou, tratei de detalhar roteiros. Ouvi algumas pessoas e assim me
inteirei do clima, da alimentação, das roupas adequadas. Tudo como a quem urgia
fazer o sonho virar epopeia pessoal.
É preciso dizer que atravessávamos uma época de
sequestros de aviões e por mais estranho que pareça, ser levado a Cuba em nave
arrestada seria o máximo. Não aconteceu assim, mas dei meu jeito. Trabalhava
então para uma companhia de Turismo, Stela Barros que, por sua vez tinha
conexões com uma agência de Taubaté, ABC Turismo, da família Matera. Por aquele
tempo, a Disney World já atraia a meninada e liderei algumas excursões. E
guardava meus tostões até que, finalmente capitalizado, empreendi um périplo
que me fazia feliz com o lustro de rapaz revolucionário. A aventura era
complicada, pois tinha de voar até Miami, de lá para a Cidade do México e de
lá, clandestino, cheguei a Santiago. Fiquei deslumbrado com a Cidade Velha,
Centro Histórico, com o povo, música, comida... E com o ambiente político. Mas,
isso não era tudo. O planejado era ir a Sierra Maestra. Mas, onde mesmo ficava
tal lugar? De Santiago, as “sagradas montanhas” sequer eram vistas. Foi assim
que me joguei na problemática cubana pós-revolucionária. Havia velhos
automóveis que fariam a viagem para turistas, mas era muito caro. Segui
sugestão de apoio na Universidade, mas os colegas não tinham recursos para
empreender meu sonho. Correndo por vários caminhos, buscando socorro para
finalizar o propósito da viagem, vi uma semana passar. Frustrações: fui a Cuba,
venci todos os empecilhos possíveis, mas não cheguei ao destino ideado.
O que contei na volta? Para
os círculos mais íntimos, exatamente para eles, não podia deixar de propalar as
maravilhas do que não vi. Minha cabeça, sem titubeios, montou uma narrativa
imaginária e a memória do que vi no papel, ouvi das pessoas e gravei de filmes
e notícias foi o suficiente para me permitir destilar a memória de uma viagem
que não fiz. Para os demais, o silêncio era conveniente e alternativa única.
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