Roberto Rillo Bíscaro
Dia 11 de janeiro, a 72ª edição do respeitado Golden
Globe marcou significativa mudança na apreciação crítica da produção
televisiva: pela primeira vez uma série produzida por um serviço de streaming (aqueles tipo Netflix) ganhou
prêmio importante: melhor show na categoria musical ou comédia. Jeffrey Tambor,
protagonista dessa série, levou o globo de melhor ator. Interpretando um
ex-professor universitário quase 70tão que finalmente assume sua identidade
transgênero.
A primeira temporada de Transparent (2014), produzida pela
Amazon, pelo menos nesse período de gênese desse tipo de serviço, fez jus a meu
desejo de que as novas plataformas de produção não ruminem apenas o mais do
mesmo (leia aqui). É sólido e certo que o modo de ver/consumir TV muda a passos
largos e também é certeiro que as novas plataformas têm muito mais capacidade
de atingir nichos específicos. Bom, porque, pelo menos em teoria, se estou a
fim de produções búlgaras ou gosto de ver grupos X ou Y representados, tenho
essa possibilidade. Ruim, porque segue o processo de guetificação.
Os 10 episódios de Transparent trazem pra ribalta a
comunidade mal conhecida e entendida dos cross dressers ou transgêneros,
dolorosamente revelando nossa ignorância geral sobre o assunto. Sequer sei se
cross dresser e transgênero são sinônimos, tenho que procurar depois que
escrever esta resenha. Esse é um ponto salutar desse tipo de programa, que um
dia quiçá seja aproveitado com personagem albina: o espectador que queira sair
de sua zona de conforto pode inquirir, investigar, pesquisar sobre os temas
abordados, que não precisam ser recitados como em uma aula.
Criada e dirigida por Jill Soloway, cujo pai passou por
transformação semelhante, Transparent coloca um protagonista idoso experimentando
esse processo de subversão dos estereótipos de gênero. Morton assume a
identidade de Maura, usa maquiagem, pinta as unhas, usa cabelão, tem trejeitos
femininos, mas somos informados de que seu desejo é pelo sexo oposto. Isso nos
faz questionar nossos preconceitos e acepções. Tendemos a associar
simetricamente o desejo sexual à indumentária, então quem veste “roupa de
homem” deve gostar de mulher e vice-versa. Crescendo com isso na cachola,
esquecemos que não passa de construção cultural. Escoceses usa(va)m “saia” e
ninguém dirá que Sean Connery não é “macho”. Mas as imagens de ultrafeminilidade
ou hipermasculinidade são tão poderosas em nossas mentes que, mesmo sabendo das
construções culturais e armadilhas patriarcais envolvidas no jogo de poder,
pode nos custar ver um tipo vovozão judeu batendo o cabelo. Até porque, nossa
visão de ultrafeminilidade não encapsula mulheres mais velhas. Enfim,
Transparent é uma joia pra pormos em teste e discutirmos nossas neuras
freudianas e repressões. Por que a filha mais nova de paletozinho e gravata não
nos afeta/incomoda tanto? Por que damos mais elasticidade ao visual feminino?
Por que a personagem fora cuidadosamente representada como heterossexual
“promíscua”, então estamos mais “seguros” sobre ela? Ou será porque a tal
“elasticidade” concedida à mulherada é apenas disfarce pro fato de que realmente
apenas nos importamos com e tememos a “desfiguração” do falo?
Dezenas de perguntas vêm à mente, suscitadas pelo roteiro
e não por personagens dando conceitos disso ou daquilo. Transparent parece indie movie; até a trilha sonora tem
aquele jeitão Sundance. Alguns momentos me lembravam muito o clima de Six Feet Under. E não é que Soloway esteve envolvida naquele novelão com PhD?
É isso, a série é a vida dessa família complicada (qual
não é?). A trans-sexualidade do papi é apenas parte da história. Obviamente que
razão de ser do show e pela qual mais nos interessamos, mas os 3 filhos e a
ex-esposa (Judith Light, sempre ótima!) têm suas trajetórias que também
despertam questionamentos sobre diferentes possibilidades de família e
sexualidade. Meu lado malvado às vezes achava que um estágio na Katmandu
pós-terremoto seria muito terapêutico pra esses meninos classe-média alta, que
podem se dar ao luxo dessas possibilidades e questionamentos, mas sei que não
se pude julgar os problemas assim, por comparação externa. Então, voltava a ser
bonzinho e compreensivo.
É, Transparent pode nos ajudar a ser mais tolerantes com
os universos emocionais alheios.
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