Nosso cronista-historiador está meio polêmico hoje! Em meio a considerações sobre o ato de fotografar, ele investe contra os selfies, o que você acha?
A AMEAÇA FOTOGRÁFICA: os selfies.
José Carlos
Sebe Bom Meihy
Em termos práticos, na fria composição de
elementos conjugados, fotografia é a combinação articulada do fotógrafo com um
foco registrado, mediado pela câmera. Mas, isso é pouco para caracterizar um
dos produtos mais difundidos do maquinário moderno. Personagens de uma relação
na qual um explica o outro – fotógrafo, foto e ato de fotografar – os três só
têm razão se vistos em conjunto. E o resultado é a mágica que demanda admiração,
mas que aponta para mudanças da aceitação. Não há dúvida que a fotografia
fascina, mas continuará assim? A vulgarização de seu uso e a multiplicação
ilimitada do acesso comprometem a reputação dos bons fotógrafos. Compromete
também a qualidade que não passa mais por crivos analíticos rigorosos.
Em preto e branco ou colorida, as fotos evocam
sentimentos, guardam segredos poucas vezes revelados em palavras ou descrições
escritas. Isso gera um culto e fundamenta a tal sociedade do espetáculo,
proposta por Debord. Além disto, explica o redimensionamento da imagem como
fenômeno social. Então, como desafio desdobrado, tanto o ato fotográfico como a
foto e o fotógrafo se tornam objeto de admiração. Mas é inegável o abastardamento
da fotografia, rebaixada a prática corriqueira pela vulgarização. Não faltam
inclusive alarmantes gritas de que a fotografia como arte vai acabar. Com os selfies todos ser acham fotógrafos e isso
é comprometedor.
Mas, falemos um pouco dos apreciadores de
fotografia. Existem os que se alimentam e se esgotam em prazeres visuais
imediatos, e há também os demais, aqueles que insatisfeitos com prazer contido
na simplicidade do consumo primeiro, determinam cultos. Uns, se constituem em
público; outros em admiradores, seres capazes de outras miradas. Separando os
meros espectadores que se descomprometem de mistérios profundos, os exegetas da
decifração, investigadores de enigmas inscritos além do produto fascinante dado
pela tecnologia, visitam os interiores de um mundo irreal. São os que vêm mais
do que imagens, mais mesmo do que vida, enxergam alma nas fotos. Nestes casos,
compõem enredos ficcionais e querem saber do autor, dos personagens ou fatos, e
assim adivinham luzes, sombras, gestos ocultos, palavras interditas, histórias
emblemadas. Nessa senda ganha sentido a perturbadora frase de Henri
Cartier-Bresson que mexe com os segredos flagrados pelas câmeras: “a
fotografia é uma lição de amor e ódio ao mesmo tempo. É uma metralhadora, mas
também é o divã do analista. Uma interrogação e uma afirmação, um sim e um não
ao mesmo tempo. Mas é sobretudo um beijo muito cálido”.
Fotos vistas além das imagens estampadas revelam
a busca de uma eternidade que poderia ser provisória se não captada.
Poeticamente, não se resiste dizer que a fotografia é um protesto do efêmero da
vida, e assim se comporta como negação do plano divino que fada tudo ao
esquecimento. Registro, documento, arte, o que vale mesmo é a negação do fátuo,
passageiro, morredouro. E assim se explica o ângulo ficcional da fotografia. Abre-se
um novo cosmo de meditação e nele cabem a liberdade analítica e o direito à
curiosidade possível. Ainda que feita por um, a fotografia autoral se converte
em algo mais que manifestação pessoal. Vira argumento sociológico,
transforma-se em código, força relações dialógicas e se inscrevem em
constelações que enfeitiçam seus cultores, promovem mostras, animam exposições,
motivam livros.
Não basta mais, para esses, a existência do
fotógrafo, da máquina que registra e do modelo ou o fato. Junta-se à unidade
fotografada a série, o conjunto, e então o artista se faz como decorrência do
processo de produção e escolha dos produtos fotografados. É dessa forma que o
curso de elaboração do ato fotográfico seriado acumula eras de sutil
amadurecimento. Mas lembremos que a fotografia é também uma ilusão do real. O
que se imagina de espontâneo em fotografia é mentira. Nesse dilema reside a
diferença entre “ver” e “olhar” que projetados na contemplação de terceiros
duplica relações. Sim a fotografia reclama público, convoca audiências e só
assim ganha sentido como fato social. Seja como for, atualmente ninguém mais
vive sem a fotografia. Mas até quando? Tudo depende de como vamos acolher o ato
fotográfico em tempos de selfies.
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