quarta-feira, 2 de setembro de 2015

CONTANDO A VIDA 121

Um dos baluartes da Nouvelle Vague está de filme novo na praça. Nosso cronista-historiador foi ver o novo Godard e saiu tão "cabeça", que escreveu lindo texto sobre o trabalho dese francês octogenário, que adora comunicar a impossibilidade da comunicação.
E, será que se leva pipoca e refri a um filme do Godard? Consultemos nosso assessor pra etiqueta-cabeça, o Professor Sebe!

PARA VER GODARD...
José Carlos Sebe Bom Meihy

Tem filme novo de Jean-Luc Godard na praça, e isso se torna acontecimento notável em agendas gerais. Sou admirador dele e, confesso, sempre que me lembro, ainda fico impactado com Nossa Música, 2004, e principalmente com o Filme Socialismo, 2010. Como ele inova e é radical na audácia e frescura dos 84 anos de vida! Só mesmo Godard para me fazer virar a esquina dos filmes fáceis, óbvios, comédias românticas com finais felizes. Todos sabem, sou fã da tradição que consagra “cinema como a melhor diversão”, portanto, de regra, “abaixo os filmes cabeça”. Como se trata de Godart, cuidei de ver logo a peça, pois já nos dias de estreia o afamado Adeus à Linguagem tem provocado tanta polêmica que optei por formular meu próprio juízo, além da usual prática que recomenda uma espécie de manual de instrução para o entendimento da filmografia godardiana. Pois bem, arrumei minha melhor fantasia de intelectual e lá fui à sala repleta de pessoas que pareciam esparramar inteligência. Mediante tanta solenidade, abdiquei da pipoca e do refrigerante, pois não me parecia bem compor meu figurino com apetrechos tão prosaicos. É lógico que fui no melhor cinema e não admitiria ver o filme sem o recurso da terceira dimensão, do som refinado, condições coerentes com a indicação do diretor que não permitiu inclusive que todas as falas fossem traduzidas.
No caso de Adeus à Linguagem, a sutil chave do entendimento foi dada pelo próprio Godard que desde o título, ludicamente brinca com as palavras: “ah Deus” que vira “Adeus”, e “au langage” que se transforma em “à Linguagem”. Fica assim dada a partida para exigentes decifrações que se alongam por rápidos 70 minutos. O jogo, o tal trato lúdico, é ferramenta essencial para o entendimento do enredo. Enredo? Eu disse enredo?... Há um vestígio de trama: um casal que aparentemente se ama, mas não consegue se comunicar e que tem um cão. Na aparência tudo é fragmentado, interrompido, quebrado, e sugere não haver conexão entre cenas de um cotidiano absurdo, naturalizado na ilógica da vida moderna. Diria mesmo que um dos exercícios de Godard é indicar caminhos para a recepção de mensagens fraturadas, mas, ao mesmo tempo, trata de formular ciladas que exigem do espectador ligações sempre provisórias e titubeantes. Os poucos protagonistas humanos se compõem principalmente com a televisão que passa filmes antigos e com o cachorro. O cão, aliás, é apresentado, segundo evocação darwiniana, como “o único ser vivo que ama mais seu dono do que a si próprio” e a mensagem subliminar que percorre todo o filme conduz à fatalidade, à solidão, ao egoísmo e desencontro. A aludida perda da linguagem acontece em meio à inviabilidade da comunicação. Chegando a esse entendimento, o filme alça graça e beleza, condições para a sobrevivência no caos.
A narrativa fílmica de Adeus à Linguagem é atrevida, cheia de ângulos e animada por alternâncias de cores exageradas e preto e branco destacado em retratos primorosos. Em várias passagens há apelos impressionistas e Monet não passa despercebido, assim como breves frases musicais de Beethoven. Como um todo, o filme é um ensaio experimental, montado com imagens das mais diversas texturas e se vale de citações que se repetem na busca de nexos. Contrastando com o nonsense das cenas, pensadores selecionados e dizeres explicadores da filosofia transparecem costurando imagens com a memória dos espectadores. Tudo é criativo e desafiador. Com mais esta joia do cinema contemporâneo, Godard revoluciona a linguagem audiovisual e nos leva a admitir a contradição enunciada no título do filme. Nada de Adeus à linguagem. Ela é viva e se refaz. O filme é difícil de ver, mas imperdível.  

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