Um dos baluartes da Nouvelle Vague está de filme novo na praça. Nosso cronista-historiador foi ver o novo Godard e saiu tão "cabeça", que escreveu lindo texto sobre o trabalho dese francês octogenário, que adora comunicar a impossibilidade da comunicação.
E, será que se leva pipoca e refri a um filme do Godard? Consultemos nosso assessor pra etiqueta-cabeça, o Professor Sebe!
E, será que se leva pipoca e refri a um filme do Godard? Consultemos nosso assessor pra etiqueta-cabeça, o Professor Sebe!
PARA VER GODARD...
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Tem filme novo de Jean-Luc Godard na praça, e isso se torna acontecimento notável em agendas gerais. Sou admirador dele e, confesso, sempre que me lembro, ainda fico impactado com Nossa Música, 2004, e principalmente com o Filme Socialismo, 2010. Como ele inova e é radical na audácia e frescura dos 84 anos de vida! Só mesmo Godard para me fazer virar a esquina dos filmes fáceis, óbvios, comédias românticas com finais felizes. Todos sabem, sou fã da tradição que consagra “cinema como a melhor diversão”, portanto, de regra, “abaixo os filmes cabeça”. Como se trata de Godart, cuidei de ver logo a peça, pois já nos dias de estreia o afamado Adeus à Linguagem tem provocado tanta polêmica que optei por formular meu próprio juízo, além da usual prática que recomenda uma espécie de manual de instrução para o entendimento da filmografia godardiana. Pois bem, arrumei minha melhor fantasia de intelectual e lá fui à sala repleta de pessoas que pareciam esparramar inteligência. Mediante tanta solenidade, abdiquei da pipoca e do refrigerante, pois não me parecia bem compor meu figurino com apetrechos tão prosaicos. É lógico que fui no melhor cinema e não admitiria ver o filme sem o recurso da terceira dimensão, do som refinado, condições coerentes com a indicação do diretor que não permitiu inclusive que todas as falas fossem traduzidas.
No caso de Adeus à Linguagem, a sutil chave do
entendimento foi dada pelo próprio Godard que desde o título, ludicamente brinca
com as palavras: “ah Deus” que vira “Adeus”, e “au langage” que se transforma em “à Linguagem”. Fica assim dada a partida para exigentes decifrações
que se alongam por rápidos 70 minutos. O jogo, o tal trato lúdico, é ferramenta
essencial para o entendimento do enredo. Enredo? Eu disse enredo?... Há um
vestígio de trama: um casal que aparentemente se ama, mas não consegue se
comunicar e que tem um cão. Na aparência tudo é fragmentado, interrompido, quebrado,
e sugere não haver conexão entre cenas de um cotidiano absurdo, naturalizado na
ilógica da vida moderna. Diria mesmo que um dos exercícios de Godard é indicar
caminhos para a recepção de mensagens fraturadas, mas, ao mesmo tempo, trata de
formular ciladas que exigem do espectador ligações sempre provisórias e
titubeantes. Os poucos protagonistas humanos se compõem principalmente com a
televisão que passa filmes antigos e com o cachorro. O cão, aliás, é
apresentado, segundo evocação darwiniana, como “o único ser vivo que ama mais seu dono do que a si próprio” e a
mensagem subliminar que percorre todo o filme conduz à fatalidade, à solidão, ao
egoísmo e desencontro. A aludida perda da linguagem acontece em meio à
inviabilidade da comunicação. Chegando a esse entendimento, o filme alça graça
e beleza, condições para a sobrevivência no caos.
A narrativa
fílmica de Adeus à Linguagem
é atrevida, cheia de ângulos e animada por alternâncias de cores exageradas e preto
e branco destacado em retratos primorosos. Em várias passagens há apelos
impressionistas e Monet não passa despercebido, assim como breves frases
musicais de Beethoven. Como um todo, o filme é um ensaio experimental, montado
com imagens das mais diversas texturas e se vale de citações que se repetem na
busca de nexos. Contrastando com o nonsense
das cenas, pensadores selecionados e dizeres explicadores da filosofia
transparecem costurando imagens com a memória dos espectadores. Tudo é criativo
e desafiador. Com mais esta joia do cinema contemporâneo, Godard revoluciona a
linguagem audiovisual e nos leva a admitir a contradição enunciada no título do
filme. Nada de Adeus à linguagem. Ela
é viva e se refaz. O filme é difícil de ver, mas imperdível.
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