quarta-feira, 23 de setembro de 2015

CONTANDO A VIDA 124

Os opostos de atraem; os iguais se retraem? Há fórmula pra se viver a dois? Saiba lendo nosso historiador-cronista que usa espelhos, Picasso e Monet pra falar sobre amor. Claro que ele é chique!

O REAL DA VIDA ENTRE PICASSO E MONET

José Carlos Sebe Bom Meihy

Sem dúvida, o espelho é um dos produtos mais estranhos da História. A noção especular, de igual exatamente contrário, é a um tempo fascinante e amedrontadora. Sim, olhando para o espelho nos vemos perfeitamente como somos, mas ao contrário. A repetição desse ato cotidianamente nos rouba a estranheza que deveria estar sempre presente. Talvez por tantos enigmas contidos nos reflexos não nos damos conta dos efeitos da situação. Isso, contudo nos faz pensar nas singularidades possíveis em outras situações. É comum a gente pensar, por exemplo, em termos amorosos na nossa “alma gêmea” ou na “outra metade”. E basta enunciar tal circunstância para novos problemas se abrirem. Afinal, quando procuramos alguém para nos completar respeitamos o princípio da igualdade absoluta, das tais afinidades, ou partimos para outros teoremas emocionais, algo do tipo “os iguais se atraem”? Confesso que cheguei a tais questões analisando alguns casais, amigos queridos. Explico-me...
Conheço gente que está junto há muitos anos. São seres tão completamente diferentes que imagino os dilemas diários: ele gosta de ler, ela não; ela ouve samba e ele música clássica; os filmes preferidos de cada um são opostos e igualmente polarizados os gostos alimentares, lugares para visitar, até o horário para dormir; ele é quieto até demais e ela demais exuberante. Sempre que indagados sobre a quebra da probabilidade do convívio ambos repetem que um respeita o outro e que existe alegria na divisão das diferenças. Sou obrigado a acreditar. Mas, tenho que revelar que conheço também um casal em que os dois são muito parecidos, tanto que as volições se confundem: ambos gostam de dançar; têm hábitos noturnos; adoram as mesmas peças de teatro; nos restaurantes pedem sempre os mesmos pratos combinados com os mesmos vinhos e sobremesas. Até nas explicações ontológicas ambos são coerentes e, para o mundo, repetem que “nasceram um para o outro”.
Pois bem, o complicado para mim é quando coloco em tela de juízo os dois casos. Os primeiros dão certo porque não têm nada em comum, e os segundos dão certo porque têm tudo em comum. Qual a lógica então?. Uns têm que negociar o tempo todo, mediar conflitos de gostos e aptidões diuturnamente. Outros, vivem plenos a monotonia da igualdade eterna. Por certo não se trata de preferência, até porque a maioria das pessoas vive com parcelas de desigualdades e semelhanças e vão atravessando o tempo aprendendo os limites e afinidades uns dos outros. Graças a Deus que é assim, aliás. De toda forma, resolvi investigar melhor ambas as situações e na transparência dos acontecimentos, na frieza da racionalidade não consegui chegar à conclusão alguma.
Aconteceu recentemente de eu ser convidado para uma festa e me encontrar com os dois casais. Primeiro avistei e fui saudado pelo par diametralmente diferente. Ele estava de roupa escura e ela clara; ele se dizia com dor de cabeça e com vontade de ir embora e ela esfuziante garantia que seria a última a sair. Sei lá porque, lembraram-me um quadro de cubista de Picasso. Em outra roda estive com o casal harmonioso, ambos se trajavam discretamente, ele de cinza e ela de beije; de braços pareciam navegar em lago tranquilo pelos cantos da sala; os dois sorriam leves e até evocavam os jardins de Monet. Precisei um interlocutor para verbalizar o meu dilema dramático. Achei uma amiga também solitária e resolvi perguntar sua opinião. Foi bom falar com uma mulher que, felizmente, com uma palavra acabou com o meu raciocínio cirúrgico. “Trata-se do amor”, respondeu biblicamente a colega e completou “o amor tudo resolve”. Foi assim que voltei ao espelho e aceitei que, em frente a ela, olhando firme para minha imagem refletida apenas me vejo, igual contrário, sozinho. Por favor, não vejam fatalismo nisso. Precisei virar sete décadas para aprender que o sentido da idade está em se aceitar se amando, dispensando a atração dos contrários ou a identidade dos iguais.

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