Os opostos de atraem; os iguais se retraem? Há fórmula pra se viver a dois? Saiba lendo nosso historiador-cronista que usa espelhos, Picasso e Monet pra falar sobre amor. Claro que ele é chique!
O REAL DA VIDA ENTRE PICASSO E MONET
O REAL DA VIDA ENTRE PICASSO E MONET
José Carlos Sebe Bom
Meihy
Sem dúvida,
o espelho é um dos produtos mais estranhos da História. A noção especular, de
igual exatamente contrário, é a um tempo fascinante e amedrontadora. Sim,
olhando para o espelho nos vemos perfeitamente como somos, mas ao contrário. A
repetição desse ato cotidianamente nos rouba a estranheza que deveria estar
sempre presente. Talvez por tantos enigmas contidos nos reflexos não nos damos
conta dos efeitos da situação. Isso, contudo nos faz pensar nas singularidades
possíveis em outras situações. É comum a gente pensar, por exemplo, em termos
amorosos na nossa “alma gêmea” ou na “outra metade”. E basta enunciar tal circunstância
para novos problemas se abrirem. Afinal, quando procuramos alguém para nos
completar respeitamos o princípio da igualdade absoluta, das tais afinidades,
ou partimos para outros teoremas emocionais, algo do tipo “os iguais se
atraem”? Confesso que cheguei a tais questões analisando alguns casais, amigos
queridos. Explico-me...
Conheço
gente que está junto há muitos anos. São seres tão completamente diferentes que
imagino os dilemas diários: ele gosta de ler, ela não; ela ouve samba e ele
música clássica; os filmes preferidos de cada um são opostos e igualmente
polarizados os gostos alimentares, lugares para visitar, até o horário para
dormir; ele é quieto até demais e ela demais exuberante. Sempre que indagados
sobre a quebra da probabilidade do convívio ambos repetem que um respeita o
outro e que existe alegria na divisão das diferenças. Sou obrigado a acreditar.
Mas, tenho que revelar que conheço também um casal em que os dois são muito
parecidos, tanto que as volições se confundem: ambos gostam de dançar; têm
hábitos noturnos; adoram as mesmas peças de teatro; nos restaurantes pedem
sempre os mesmos pratos combinados com os mesmos vinhos e sobremesas. Até nas
explicações ontológicas ambos são coerentes e, para o mundo, repetem que
“nasceram um para o outro”.
Pois bem, o
complicado para mim é quando coloco em tela de juízo os dois casos. Os
primeiros dão certo porque não têm nada em comum, e os segundos dão certo
porque têm tudo em comum. Qual a lógica então?. Uns têm que
negociar o tempo todo, mediar conflitos de gostos e aptidões diuturnamente.
Outros, vivem plenos a monotonia da igualdade eterna. Por certo não se trata de
preferência, até porque a maioria das pessoas vive com parcelas de
desigualdades e semelhanças e vão atravessando o tempo aprendendo os limites e
afinidades uns dos outros. Graças a Deus que é assim, aliás. De toda forma,
resolvi investigar melhor ambas as situações e na transparência dos
acontecimentos, na frieza da racionalidade não consegui chegar à conclusão
alguma.
Aconteceu
recentemente de eu ser convidado para uma festa e me encontrar com os dois
casais. Primeiro avistei e fui saudado pelo par diametralmente diferente. Ele
estava de roupa escura e ela clara; ele se dizia com dor de cabeça e com
vontade de ir embora e ela esfuziante garantia que seria a última a sair. Sei
lá porque, lembraram-me um quadro de cubista de Picasso. Em outra roda estive
com o casal harmonioso, ambos se trajavam discretamente, ele de cinza e ela de
beije; de braços pareciam navegar em lago tranquilo pelos cantos da sala; os
dois sorriam leves e até evocavam os jardins de Monet. Precisei um interlocutor
para verbalizar o meu dilema dramático. Achei uma amiga também solitária e
resolvi perguntar sua opinião. Foi bom falar com uma mulher que, felizmente,
com uma palavra acabou com o meu raciocínio cirúrgico. “Trata-se do amor”,
respondeu biblicamente a colega e completou “o amor tudo resolve”. Foi assim
que voltei ao espelho e aceitei que, em frente a ela, olhando firme para minha
imagem refletida apenas me vejo, igual contrário, sozinho. Por favor, não vejam
fatalismo nisso. Precisei virar sete décadas para aprender que o sentido da
idade está em se aceitar se amando, dispensando a atração dos contrários ou a
identidade dos iguais.
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