quarta-feira, 7 de outubro de 2015

ALBININHOS PORTUGUESES

Raro Afonso, valente Afonso


Um pai hipocondríaco, um filho albino. Uma mãe que ri por cima do que já chorou. A estranheza de dois pais morenos terem um menino tão louro. É a história de Afonso, que aos três anos é seguido por quatro médicos de áreas diferentes. Que é também a história do irmão Manel - “o mano tem muita sorte por ser europeu, eu sei” - e de Nuno e Cláudia. E que é ainda uma história sobre albinismo, uma condição genética rara. E sensível

Hora de almoço e o sol a pique em Lisboa. Nuno e Cláudia mudaram-se recentemente de Seia para a capital e vão a caminho de um encontro de família. Num semáforo vermelho, Nuno ajusta o retrovisor para ver os miúdos:
- Cláudia, há ali um raio de sol do lado do Afonso. Vais lá?
Ela não ouve logo o marido. É um bocadinho bicho-do-mato e está embrulhada dentro dela enquanto o Manel e o Afonso brincam lá atrás. Talvez pense no carro que compraram com tejadilho e que não podem abrir para apanhar sol. Usam-no à noite para ver as estrelas e durante o dia, enfim, dá jeito para prender uma echarpe. Nuno corta-lhe o pensamento.
- Pssst, olha o sol. É preciso tapar melhor a janela.
E Cláudia lá tira o cinto, sai do lugar, passa entre os bancos da frente, senta-se na nesga de espaço entre as cadeiras de criança e volta a entalar o lenço escuro e grosso que tapa as janelas do carro como se fosse uma redoma. O retrovisor pode voltar à posição certa e Nuno pode parar de ser paranoico com o sol. “O Afonso anda sempre untado com um creme especial contra os raios UV, mas o Nuno é hipocondríaco. Imagine o que é um pai hipocondríaco com um filho albino”, afirma Cláudia, entre gargalhadas. Hoje, esta mãe de 35 anos ri por cima do que já chorou.

O BEBÉ MAIS LOURO DE VISEU

Afonso nasceu a 30 de novembro de 2012 no hospital de São Teotónio, em Viseu, e em poucas horas tornou-se alvo da curiosidade de todos os médicos, enfermeiros e auxiliares de saúde. “Até a namorada de um médico pediu para ver o nosso bebé”, lembram os pais. Mais tarde, Cláudia e Nuno iriam confirmar no hospital que Afonso terá sido o primeiro albino a nascer em Viseu, mas naqueles primeiros dias em família a estranheza de dois pais morenos terem um filho tão louro demorou a dar lugar à suspeita de uma doença rara.
Na internet perceberam que o filho podia ter albinismo, uma condição genética rara que se carateriza pela ausência total ou quase total de pigmento na pele, nos pelos, no cabelo e nos olhos. O albino não tem proteção natural contra os raios ultravioleta e a exposição ao sol provoca queimaduras severas que podem rapidamente degenerar em cancro de pele. A visão é também afetada e o doente tem sérios problemas oculares - muitas vezes chega a ser considerado legalmente cego. Foi neste ponto que Cláudia bloqueou. Na cabeça dela, o albinismo do filho apenas teria repercussões na pele. Mas, além do corpo e do cabelo absolutamente brancos, o olhar de Afonso era estranho, parecia perdido. Cláudia lembrava-se dos primeiros tempos de vida do filho mais velho, Manuel, e sabia que com aquele bebé estava a voltar à estaca zero: “Antes de o Afonso nascer, sabíamos qual o melhor comportamento a ter com um bebé e com o sol, mas depois tivemos de reaprender tudo. Investimos muito tempo a fazer pesquisas e foram os fóruns online de pais de albinos que mais nos ajudaram”.
Hoje, com quase três anos, Afonso é seguido por quatro médicos de áreas diferentes - pediatria, oftalmologia, dermatologia e genética - mas o seu corpo ainda encerra vários mistérios. “Mesmo depois de termos feito testes genéticos, o que sabemos hoje é que uma mutação genética minha e uma da Cláudia passaram para o Afonso, mas ainda nos falta descobrir se o albinismo dele não será apenas o sintoma de uma doença ainda pior”, explica Nuno.
Segundo a Raríssimas, Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras em Portugal, na União Europeia as doenças mais invulgares são aquelas que afetam menos de 5 pessoas em 10 mil. O albinismo é raro porque afeta uma em 17 mil ou 20 mil pessoas na Europa. Por essas contas, em Portugal, com uma população de 10 milhões, haveria cerca de 500 albinos de diferentes idades. Não existem estudos conhecidos, nem associações nacionais de apoio a pessoas com esta condição.
Susana Vilaça é coordenadora do serviço de dermatologia do Hospital Lusíadas, no Porto, e nunca teve pacientes albinos: “É uma doença congénita extremamente rara e existem várias subclassificações desta entidade. A falta de pigmentação na pele obriga a um cuidado cutâneo extremo, porque o risco de sofrer queimaduras e desenvolver cancro de pele é muito elevado. Entre outros cuidados, uma pessoa albina deve procurar sempre sombras, usar óculos de sol, roupa escura e densa e um protetor solar superior a 50”.

TROCAR OS DIAS PELAS NOITES

Com seis semanas de vida, Afonso estava a receber a sua primeira consulta de oftalmologia. Cláudia levava nos braços um bebé que julgava cego e não sabia o que fazer: “Uma das primeiras coisas que a médica fez foi desligar e voltar a ligar a luz do consultório. Desligou e ligou, desligou e ligou, e depois lá nos disse: ‘Cego não é, mas vamos ter de trabalhar muito com ele nos próximos tempos’”. Assim, no início de 2013, “as luzes de natal passaram diretamente da árvore para o berço. Comprámos também uma bola de espelhos de discoteca e pendurámo-la perto dele.”
Nos primeiros meses de vida, os bebés começam por reconhecer objetos de cores contrastantes, sobretudo pretos e brancos. No caso de Afonso, tudo o que pudesse ser apresentado dentro desses tons seria essencial. “O olho é um músculo e tem de ser exercitado como tal. A fase mais importante do olho de um bebé é até aos seis meses de vida e essa era a janela que tínhamos para investir ao máximo no Afonso”, lembra Cláudia, enquanto abre uma caixa com alguns dos primeiros brinquedos do filho.
Além dos padrões de cores fortes e contrastantes, os sons também se tornaram essenciais para o desenvolvimento da visão de Afonso. “Chegámos a prender-lhe guizos nos pés e nos pulsos para ele ouvir e ir à procura. A estimulação foi tanta que o Afonso, com baixa visão, até começou a andar primeiro que o Manel”, conta a mãe.
Afonso brinca com um livro de contrastes fortes. Segundo os pais, não é fácil encontrar no mercado uma boa oferta de brinquedos pretos e brancos

AQUELE PAI ALI DEVE ACHAR QUE ESTOU A CORRER ATRÁS DO FILHO DE OUTRA PESSOA QUALQUER

Essencial para este trabalho com uma criança tão pequena foram as consultas de baixa visão no Hospital Pediátrico de Coimbra e uma equipa do Centro de Apoio à Intervenção Precoce na Deficiência Visual (CAIP-DV), que avalia regularmente a evolução visual do Afonso. A CAIP-DV pertence ao Sistema Nacional de Intervenção Precoce na Infância (SNIPI), um serviço gratuito que está disponível em todos os concelhos de Portugal e que tem equipas locais de profissionais de saúde (ELI). Neste caso, uma ELI passa várias manhãs da semana na creche do Afonso a fazer exercícios visuais. “Neste momento temos sessões duas vezes por semana e continuamos a ter metas para atingir, mas os exercícios já não são para crianças com baixa visão, podiam aplicar-se a qualquer criança”, afirma Cláudia, satisfeita por hoje saber que o filho, com óculos, vê quase tão bem como qualquer outra criança.
Afonso num carrinho de bebé com uma proteção específica contra os raios UV que os pais descobriram à venda no estrangeiro e mandaram vir pela internet
A tarde vai a meio e os quatro estão num jardim debaixo de sombra. Cláudia adora o cabelo comprido dos filhos; toca-lhes com jeitinho, desembaraça os nós das melenas dos rapazes, e enquanto o faz lembra-se de quando estava grávida do Afonso e do quanto desejava que ele nascesse com caracóis iguais aos do Manel. Recorda-se das brincadeiras da irmã, que é loura, e que lhe dizia ter a certeza de que o Afonso ia nascer com o cabelo encaracolado: “Louro é que não será”. E louro é que não foi. O cabelo, as pestanas e todos os pelos no corpo de Afonso são brancos, tão brancos que desaparecem na água. “Ir à rua com estes dois miúdos é uma aventura. As cabeças viram-se todas para nós. E às vezes estou a correr atrás do Afonso no parque infantil e penso ‘aquele pai ali deve achar que estou a correr atrás do filho de outra pessoa qualquer’”, conta Nuno.
Hoje estes quatro estão habituados a fazer das noites os dias normais das outras pessoas. No verão, nas horas piores, o ideal é mesmo não andar na rua. E se tiver de andar, então que seja de calças e de camisa comprida. Nas horas de maior calor e de maior incidência de raios ultravioleta, afastam Afonso das janelas com luz direta. Estão também a descobrir a pouco e pouco o prazer de ir à praia entre as 19h e as 21h. Mesmo a essa hora Afonso leva sempre o chapéu, o corpo untado com creme e roupa que é lavada com uma proteção especial contra os uv. Parece complicado, mas estas rotinas são já naturais para toda a família: “O Afonso já interiorizou que se é para ir à rua, tem de levar o chapéu e de manhã até dá logo os braços para pormos o creme. Isto é uma coisa que ele tem de levar para a vida. Quando crescer, é ele que vai ter de ter cuidado com a pele, é ele que vai ter de ter cuidado com os olhos”, diz Nuno.
No parque, depois das 18h, Afonso pode brincar à sombra de t-shirt e calções e sem chapéu
A grande preocupação destes pais é a fase da adolescência, porque sabem que os miúdos são cruéis uns com os outros quando chegam à fase dos namoros e da rebeldia - não querem pôr creme no corpo, não querem usar óculos, não querem ser gozados e qualquer cuidado é um castigo. É por isso que para Nuno e Cláudia é importante que Afonso venha a conhecer outros albinos, portugueses ou não. “Há encontros em Espanha, em Inglaterra e nos Estados Unidos e estamos a pensar levá-lo a alguns.”
No Ocidente, os albinos não têm hoje problemas de integração na sociedade quando comparados com a perseguição que sofrem noutras partes do mundo. Sobretudo em países de África Oriental, muitos são abandonados à nascença e grande parte é alvo de superstições. Vistos como seres estranhos, com poderes especiais, acabam vítimas de tráfico de órgãos no mercado negro dedicado a bruxarias.
Manuel tem cinco anos e um dia há de saber que a data 13 de junho foi escolhida pelas Nações Unidas para alertar todos os anos para os ataques e a discriminação a que os albinos ainda estão sujeitos no século XXI. Para já, Manuel sabe que o irmão tem uma pele sensível ao sol e alguns problemas nos olhos. Às vezes a mãe diz-lhe: “Sabes que vais ter de ajudar sempre o teu irmão, não sabes?”. Às vezes, o filho mais velho surpreende os pais: “Eu também sei que o mano tem muita sorte por ser europeu. Eu sei”.

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