quarta-feira, 7 de outubro de 2015

CONTANDO A VIDA 126

Nosso historiador-cronista revela-se um trapalhão nesta deliciosa crônica envolvendo garrafas de vinho português, uma amiga e um mal-entendido. Divirta-se.

RÉQUIEM POR UM ALVARINHO..

José Carlos Sebe Bom Meihy
Para quem não sabe, alvarinho é uma casta de uva, típica do norte de Portugal e dela se produz um vinho excelente. Os entendidos que me perdoem por esta apresentação avant la lettre, mas, creiam, existem inocentes como eu, mortais desconhecedores dos segredos do sagrado líquido. Dizem as referências dadas por enólogos competentes que o alvarinho é o mais fino produto da vinícola portuguesa e que muito da história daquele pais está ligada às montanhas do norte fronteiriço entre Portugal e a Espanha, próximo à região galega onde florescessem as videiras. A dar mais nobreza a essa casta exclusiva da família dos brancos, o produto é distinguido como Primus inter pares, único entre os demais, portanto. E os mais sabidos derramam aqueles adjetivos que humilham os bebedores menos refinados: monovarietal, de cor aturada indo para o palha, percorrendo aromas frutados, complexo, macio, encorpado, redondo, harmonioso e persistente. Coisa fina, mesmo...
Pois na minha santa ignorância, fui convidado para uma apresentação sobre Imagem e Educação, na encantadora vila de Melgaço, região de Viana do Castelo, terra do tal vinho. A estada toda foi deslumbrante, pois além do ar puríssimo, pude me integrar por alguns dias numa paisagem única, cercado de história e vinhedos por todos os lados. Com o melhor de mim, descobria um Portugal encantado, diverso do que guardava de outras visitas. E tudo, é claro, ficava melhor com o tal do alvarinho. A narrativa poderia ter ficado na descrição fascinante, não houvesse uma história costurando a fatalidade de um engano meu. Explico-me: durante o encontro acadêmico, pude usufruir da simpatia ilimitada de colegas portugueses. Um casal em particular se aproximou de mim e de uma querida companheira de vida. E juntos trocamos ideias, experiências, e descobrimos interesses comuns. Tudo foi perfeito, diria. Tão bom que ao final, na mais elevada tradição lusitana, o distinto casal deixou à porta de meu quarto, na noite de despedida, uma caixa contendo um bom alvarinho. Havia um bilhete que anunciava de forma sutil que deveria sorver o presente junto com a colega brasileira. Entendi logo que se tratava de presente que deveria tomar brindando com a amiga. Simples assim. Como nossa saída do norte português para pegar o avião na cidade do Porto demandava longa viagem, peguei a caixa e com ela cumpri meu destino. Meu voo era diferente e assim fiquei por horas vagando com a caixa na mão. Sinceramente, pensei até em deixar a garrafa por lá, evitando peso. Dada a colaboração de outro colega que se dispôs a entregá-la em São Paulo, anui. Passados alguns dias, fui a USP para compromissos acadêmicos e lá estava a fatídica caixa. Peguei-a sem abrir e a levei para minha casa. Passados alguns dias, estava em pleno jantar em casa de amigos, toca o celular e minha amiga de viagem dizia entre indignada e desafiadora: José Carlos, onde está minha garrafa de alvarinho? Como assim?, respondi entre ofendido e perplexo. E a história ia se esclarecendo por repetidas vias de mensagens. Segundo o primeiro entender dela, a garrafa não seria para mim. Lembrei-me do bilhete e contestei. Em mensagem trocada com o casal presenteador, ficava claro que seriam duas garrafas. De meu lado, jurava que não, pois havia apenas uma caixa que, aliás, permanecia fechada. Novas idas e vindas de mensagens e minha amiga insistindo na cobrança do bom vinho. Devo dizer que estava em uma semana difícil e minha paciência ia se esgotando com as cobranças. Por fim, uma das mensagens portuguesas esclareceu tudo: era uma caixa com duas garrafas. Antes de ter certeza disso, porém, respondi de maneira grosseira à colega e quase chegamos a vias de fato. Quase, felizmente... Mas, pensam que a história acabou aí?! Ledo engano. Resolvi verificar a tal caixa e para meu desespero, havia sim duas garrafas. Desapontado comigo, puxei uma das garrafas que... Que me escapou da mão e... E se quebrou.
Drummond veio-me à cabeça: “e agora José?”... vinho no chão, pude em primeiro lugar constatar a legitimidade dos predicados: aromas frutados, cor de palha... Pois é, não sabia se chorava ou ria. E como explicar tudo para todos? Meus caros, passei dias sem dormir, meu humor variou do tinto ao branco passando pelos verdes... Mas, tinha que esclarecer tudo e tentar não morrer de vergonha. Minha primeira reação foi registrar esta história. Passados dias, pessoalmente, expliquei tudo à cara amiga e confirmei que, além de tudo o alvarinho tinha gerado uma história, meio bêbada é verdade, mas saborosa.

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