Nosso historiador-cronista revela-se um trapalhão nesta deliciosa crônica envolvendo garrafas de vinho português, uma amiga e um mal-entendido. Divirta-se.
RÉQUIEM POR UM ALVARINHO..
RÉQUIEM POR UM ALVARINHO..
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Para quem não sabe, alvarinho é uma casta de uva, típica
do norte de Portugal e dela se produz um vinho excelente. Os entendidos que me
perdoem por esta apresentação avant la
lettre, mas, creiam, existem inocentes como eu, mortais desconhecedores dos
segredos do sagrado líquido. Dizem as referências dadas por enólogos competentes
que o alvarinho é o mais fino produto da vinícola portuguesa e que muito da história
daquele pais está ligada às montanhas do norte fronteiriço entre Portugal e a
Espanha, próximo à região galega onde florescessem as videiras. A dar mais
nobreza a essa casta exclusiva da família dos brancos, o produto é distinguido
como Primus inter pares, único entre
os demais, portanto. E os mais sabidos derramam aqueles adjetivos que humilham
os bebedores menos refinados: monovarietal, de cor aturada indo para o palha,
percorrendo aromas frutados, complexo, macio, encorpado, redondo, harmonioso e
persistente. Coisa fina, mesmo...
Pois na minha santa ignorância, fui convidado para uma
apresentação sobre Imagem e Educação,
na encantadora vila de Melgaço, região de Viana do Castelo, terra do tal vinho.
A estada toda foi deslumbrante, pois além do ar puríssimo, pude me integrar por
alguns dias numa paisagem única, cercado de história e vinhedos por todos os
lados. Com o melhor de mim, descobria um Portugal encantado, diverso do que
guardava de outras visitas. E tudo, é claro, ficava melhor com o tal do
alvarinho. A narrativa poderia ter ficado na descrição fascinante, não houvesse
uma história costurando a fatalidade de um engano meu. Explico-me: durante o
encontro acadêmico, pude usufruir da simpatia ilimitada de colegas portugueses.
Um casal em particular se aproximou de mim e de uma querida companheira de
vida. E juntos trocamos ideias, experiências, e descobrimos interesses comuns.
Tudo foi perfeito, diria. Tão bom que ao final, na mais elevada tradição
lusitana, o distinto casal deixou à porta de meu quarto, na noite de despedida,
uma caixa contendo um bom alvarinho. Havia um bilhete que anunciava de forma
sutil que deveria sorver o presente junto com a colega brasileira. Entendi logo
que se tratava de presente que deveria tomar brindando com a amiga. Simples
assim. Como nossa saída do norte português para pegar o avião na cidade do
Porto demandava longa viagem, peguei a caixa e com ela cumpri meu destino. Meu
voo era diferente e assim fiquei por horas vagando com a caixa na mão.
Sinceramente, pensei até em deixar a garrafa por lá, evitando peso. Dada a
colaboração de outro colega que se dispôs a entregá-la em São Paulo, anui.
Passados alguns dias, fui a USP para compromissos acadêmicos e lá estava a
fatídica caixa. Peguei-a sem abrir e a levei para minha casa. Passados alguns
dias, estava em pleno jantar em casa de amigos, toca o celular e minha amiga de
viagem dizia entre indignada e desafiadora: José Carlos, onde está minha
garrafa de alvarinho? Como assim?, respondi entre ofendido e perplexo. E a
história ia se esclarecendo por repetidas vias de mensagens. Segundo o primeiro
entender dela, a garrafa não seria para mim. Lembrei-me do bilhete e contestei.
Em mensagem trocada com o casal presenteador, ficava claro que seriam duas
garrafas. De meu lado, jurava que não, pois havia apenas uma caixa que, aliás,
permanecia fechada. Novas idas e vindas de mensagens e minha amiga insistindo
na cobrança do bom vinho. Devo dizer que estava em uma semana difícil e minha
paciência ia se esgotando com as cobranças. Por fim, uma das mensagens
portuguesas esclareceu tudo: era uma caixa com duas garrafas. Antes de ter
certeza disso, porém, respondi de maneira grosseira à colega e quase chegamos a
vias de fato. Quase, felizmente... Mas, pensam que a história acabou aí?! Ledo
engano. Resolvi verificar a tal caixa e para meu desespero, havia sim duas
garrafas. Desapontado comigo, puxei uma das garrafas que... Que me escapou da
mão e... E se quebrou.
Drummond veio-me à cabeça: “e agora José?”... vinho no
chão, pude em primeiro lugar constatar a legitimidade dos predicados: aromas frutados, cor de palha... Pois é,
não sabia se chorava ou ria. E como explicar tudo para todos? Meus caros,
passei dias sem dormir, meu humor variou do tinto ao branco passando pelos
verdes... Mas, tinha que esclarecer tudo e tentar não morrer de vergonha. Minha
primeira reação foi registrar esta história. Passados dias, pessoalmente,
expliquei tudo à cara amiga e confirmei que, além de tudo o alvarinho tinha
gerado uma história, meio bêbada é verdade, mas saborosa.
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