Roberto Rillo Bíscaro
A nanica Dinamarca tinha opinião inflacionada sobre si. A
Dannebrog, a bandeira nacional, acredita-se ter sido enviada diretamente do
céu, durante uma batalha na Estônia, no século XIII. Orgulho nacional é
salutar, mas em 1864 a península da Jutlândia encasquetou que podia derrotar a
Toda-Poderosa Prússia, que ainda por cima estava aliada com a então grandona
Áustria, numa guerra pelo domínio dos ducados de Schleswig-Holstein, que sequer
se identificavam como daneses. Nessa disputa de Davi contra Golias, o pequenino
foi massacrado pelo gigante. A Dinamarca perdeu 25% de seu território pra
futura Alemanha e as sandálias da humildade serviram pra que a nação se
retraísse, retraçasse seu caminho e só voltasse a combater fora de seu
território mais de um século depois.
Ano passado, a TV estatal dinamarquesa produziu e exibiu
os 8 episódios da minissérie 1864, que recria o período e conta 2 histórias
pessoais pra deixar o conteúdo histórico dramatizável. Ou por ter mexido em
feridas nacionalistas ou por inadequações históricas, o show foi hostilizado
domesticamente, mas chegou à TV britânica, faminta por Scandi Drama. 1864 é a
série mais cara da TV dinamarquesa e prova que nem sempre isso é tão
importante. Sem ser ruim, perde em criatividade e poder de influenciar pra
conterrâneas mais baratas como Forbrydelsen e Borgen, as quais recomendo
primeiro pra neófitos em TV escandinava.
O delírio nacionalista que via a Dinamarca como escolhida
por Deus pra vencer e miopizava a elite política, religiosa e artística pra
pequenez dinamarquesa perante o gigantismo prussiano é muito bem retratado em
falas e posto no interessante ângulo do reacionarismo versus liberalismo. No
contexto discursivo da sustentação ideológica pra guerra, ser contra o conflito
configurava-se como reaça em contrapartida às aspirações “modernizantes” do
governo dinamarquês, que se via na vanguarda europeia com algumas noções
liberais mal deglutidas.
Quem paga as maquinações, manipulações e megalomanias
duma minoria é sempre uma maioria pobre e manobrada/manobrável ou aquela parte
que se considera elite, mas está meio afastada do centro de poder a ponto de
poder se dar ao luxo de insuflar contendas, sem necessariamente perder ninguém
nelas. Nesse ponto, 1864 é maniqueísta, mas pelo menos acerta em mostrar uma
Dinamarca lindinha de cartão-postal campesino, mas infestada de piolhos. Por
fora, bela viola; por dentro, pão bolorento.
As cenas de guerra são muito realistas e impressionam,
mas também enjoam um bocado; dava pra enxugar e fazer em 7 capítulos. Deve ter
sido a primeira vez que vi a Alemanha – na época Prússia, mas quem liga? – no
papel de agredida; mas quando resolve dar o troco, sai da frente.
Paralelo a isso, a história de 2 irmãos campesinos em
romance com a filha supostamente muito especial (não vi nada demais em Inge) do
capataz das terras do barão regional (que não pode escapar de ter filho enviado
ao campo de batalha). Ambicioso, o roteiro adicionou uma camada contemporânea à
trama na forma de uma garota de nosso século, cheia de piercings e revoltada com a perda do irmão no Iraque – a limpeza e
(aparente) paz da Dinamarca de hoje são possíveis porque a sujeira e a
violência estão em outros locais -, “condenada” a auxiliar o velho barão local.
Ao descobrir um diário numa caixa facilmente acessível, a guria encontrou as memórias de Inge, há muito fora do radar do ancião. A narrativa no passado resulta,
portanto, da leitura do diário, ou seja, o ponto de vista é do Inge. Uma
coincidência forçada demais e jamais explicada marmelizou um pouco o núcleo
contemporâneo.
Outra coisa que pode desagradar os mais materialistas é a
inclusão desnecessária dum personagem com poderes místicos, de cura, de
premonição. Isso azeda o molho histórico e acaba funcionando como deus ex
machina em um par de situações. Contradição prum mundo histórico que prova a
todo segundo a inexistência de deuses ex machinas!
1864 é pictoricamente muito bonita, tem diversos atores
queridos de fãs de Nordic Noir e Scandi Drama, é bem atuada e interessante. Só
não é ótima; mas se formos ver só o ótimo veríamos pouco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário