Nosso historiador-cronista sempre foi muito chegado em literatura, especialmente poesia. Para encerrar o ano que tal "ouvi-lo" falar lindamente sobre Drummond e Fernando Pessoa?
FERNANDO PESSOA E MEU
DESASSOSSEGO.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Quando mais jovem, gostava de
poesia. Exigente, colecionava autores e com o mesmo entusiasmo desprezava
outros tantos. Cheguei a fazer uma espécie de antologia e elenquei autores
diversos, muitos estrangeiros. Logo descobri que havia um segredo capaz de me
introduzir no estranho mundo dos poemas: a história dos autores. Sim, sou
daqueles que acreditam que vida e obra se fundem e que é impossível gostar da
produção de alguém como se nada houve com a experiência autoral. Continuo
assim, e, aliás, não é só com poesia. Curiosamente, sempre gostei mais da
produção poética estrangeira do que da nacional. Tenho uma explicação para
tanto, pois eu queria aprender alguma outra língua e a surdina da leitura de
versos em francês ou inglês me supria. Guardo ainda alguns ensaios de tradução
e até acho graça do solitário e mudo esforço. Sem exagero, o que aprendi da
língua de Cervantes derivou dos versos toscamente vertidos para o meu
português. Dos poetas que versejavam em nossa língua, com certeza, Drummond
tinha primazia. Cedo aprendi a gostar de “Rosa do povo”, e tratei de decorar
versos que sei dizer até hoje. Escrito entre 1943 e 45, o conjunto de versos
políticos traduzia a angústia da produção escrita durante a guerra. Havia para
mim, exatamente por ter nascido naqueles anos, uma espécie de mensagem
visceral, fator explicativo do tom vital de minha geração. Assim, posso dizer
que os poemas da fase "eu menor que o mundo", se compuseram como meu
primeiro convite à suposição de uma literatura comprometida. A devoção política,
a crítica à guerra e ao sofrimento humano perante tiranias, coloriam meu nascente
ideal social. E me comovia com o "sentimento do mundo", que mostrava
nossa fraqueza mediante um mundo materializado em máquinas, poderios enormes.
Confesso que Drummond assumiu papel tão
importante que os demais poetas brasileiros ou portugueses e mesmo alguns
africanos ficaram de lado. Houve, contudo, sempre uma exceção perturbadora,
Fernando Pessoa. Na altura da maturidade, me cabe retomar esse sentimento
ambíguo e tentar alguma explicação que escape do simplismo “gosto X não gosto”.
A história pessoal de Fernando Pessoa me é cativante. Chave importante para o
entendimento de sua poesia, os heterônimos são intrigantes e por isso
apresadores do gosto que convoca pensar a fatalidade da vida expressa na obra.
Não tenho como negar, contudo, que há aspectos da produção desse autor que me
afastam da apreciação pura e simples. A vulgarização de certas passagens que
caíram no domínio popularesco me arreda do refinamento que exijo da poesia
(“tudo vale a pena se a alma não é pequena”, por exemplo). De igual monta os
trocadilhos ou jogos de palavras assustam e me diminuem em entendimento. Mas
pendularmente, há o que me atrai de maneira cativante, ainda que não sejam
poemas. Entre tantos conjuntos de escritos o “livro do desassossego” me diz
muito e particularmente uma passagem onde ele faz uma contestação ontológica.
Sobretudo, há uma passagem apaixonante: “a renúncia é a libertação. Não querer
é poder”. Contrariando o senso comum que advoga que o poder está na vontade,
Pessoa nega a premissa e progride afirmando “que me pode dar a China que a
minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo
dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir
buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha
alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele” e arremata com o
seguinte dizer “transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que
somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada
somos. Que mãos estenderei para que universo? O universo não é meu: sou eu”.
Não preciso dizer que estas citações me “desassossegam”, pois formulam o grande
dilema da humanidade: o autoconhecimento e a responsabilidade de fugir do mundo
esterno. “Desassosseguemo-nos”.
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