sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

PAPIRO VIRTUAL 101

Roberto Rillo Bíscaro

Depois de ler/escrever sobre uns 3 ou 4 Nordic Noirs dinamarqueses, desejei algo escandinavo que fugisse ao padrão de narrativa célere da era do cine e TV de aventura. Queria algo ambientado “antigamente”, mas que não fosse pastiche de medievo como Game of Thrones, cujo primeiro livro sequer finalizei. Foi quando descobri a nobelizada Sigrid Undset, que entre 1920-22 publicou a trilogia Kristin Lavransdatter. Afortunadamente, consegui a elogiada tradução inglesa de Tina Nunnaly (2005), que registrou a prosa simples e direta da norueguesa.
Kristin Lavransdatter é filha do bem-sucedido nobre rural Lavrans Bjørgulfsson. Acompanhamos a vida da voluntariosa loira desde a infância até a morte. O narrador gasta capítulos para traçar com afinco o amor e união entre pai e filha pra deixar mais poderoso e consequente o desentendimento entre os 2, quando ela se apaixona por Erlend Nikulausson, rico proprietário, mas com passado desabonador envolvendo até excomunhão – imagine isso no século XIV. A obediente Kristin não resiste ao bad boy Erlend em detrimento do prometido Simon Andresson, que a tratava como criança. Erlend a trata como mulher, inclusive até a come antes do casamento. De sangue quente, risonho (contrariando estereótipos de frieza escandinava) e bastante sensual, Erlend é o tipo de homem que realmente jamais amadurece, apenas envelhece e no medievo isso significava chegar mais ou menos aos 40 e poucos.  
A trilogia trata duma tentativa de imposição da vontade individual, do livre arbítrio numa sociedade sufocada pela religiosidade e pelos costumes. Não há muito convertida ao cristianismo, a Noruega vivia o fanatismo e exagero devocional típicos dos neófitos. Cercada por e crente de dias santos, horários pra orar e superstições cristãs, como a pia Kristin lidará com a sensação de culpa e pecado impostos pela quebra da castidade antes do matrimônio? Seu relacionamento com Erlend começa “errado” também porque desobedece ao pai numa sociedade profundamente patriarcal. Lavrans está no sobrenome da filha (Filha de Lavrans) e o nome de batismo da mulher é diretamente relacionado a Cristo. Undset estabelece já no título o Complexo de Eletra e o peso teocêntrico sobre as vidas da personagem. 
O narrador cerca as escolhas “erradas” dela e dá pistas mesmo antes do casamento de que a própria Kristin sentia que o negócio poderia ir mal. Sua felicidade jamais é completa, porque a opressão do patriarcalismo teocrático, que sedimenta o religioso em prática social, amarga a relação. Eles sentem um T doido um pelo outro, mas isso sempre resulta em culpa, porém há períodos em que a carne é fraca e se esquecem de senti-la, se dão bem, riem, transam. Essa admissão do sexo parece ter causado espécie nos 1920’s. Hoje até padre descreveria as coisas de modo mais aberto.
Alinhavando fatos políticos, práticas religiosas e o cotidiano, o mergulho proporcionado por Undset é precioso para fãs da Idade Média. Atualmente, o aspecto mais fascinante de Kristin Lavransdatter provavelmente resida na apurada reconstituição da vida na Noruega do século XIV. Experta em história escandinava e filha de arqueólogo, Undset não criou nobres idealizados e apolíneos. Usando as informações de como a vida no medievo era percebida no começo do século XX, a autora católica representa-os como pouco mais do que sitiantes afluentes; tendo que trabalhar a terra, matar animais, enfim, botar a mão na massa. Também vemos infestações de piolhos e constatamos a pífia medicina de então, quase magia residual dos tempos pagãos, mais presentes do que se poderia supor.
Falando bem particularmente, ajudou muito ter visitado castelos escandinavos e escoceses pra imaginar as sensações vividas por Erlend, enquanto prisioneiro em um deles. Foi muito legal ter batido a cabeça nos umbrais nanicos, percorrido corredores de pedra e notado a falta de conforto dessas construções. Não digo que pra se entender as coisas, seja necessária sempre a experiência concreta – afinal, não quero pisar num caco de vidro pra aprender como é ser profundamente cortado -, mas ter visto in situ as cabanas norueguesas com o telhado coberto de grama ajudou deveras na visualização das cenas.   
A narrativa desse medievo está mais pra saga ou pro narrador benjaminiano do que pra roteirização de Game of Thrones. O timing, os cortes são diferentes; as descrições de natureza possuem organicidade talvez rara no século XXI, mediado pelas telas, que relegam a natureza à experiência vivida de longe e narrada já de segunda mão. Pro leitor contemporâneo o problema maior está no excessivo religioso da escrita. Ainda que de acordo com o teocentrismo reinante – Oslo se chamava Kristiania até 1925 – por vezes enjoa tanto dogma, oração e discussões teológicas.

Kristin Lavransdatter é só pros que não se importam com narrativas lentas.

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