Roberto Rillo Bíscaro
Depois de ler/escrever sobre uns 3 ou 4 Nordic Noirs
dinamarqueses, desejei algo escandinavo que fugisse ao padrão de narrativa
célere da era do cine e TV de aventura. Queria algo ambientado “antigamente”,
mas que não fosse pastiche de medievo como Game of Thrones, cujo primeiro livro sequer finalizei. Foi quando descobri a nobelizada Sigrid Undset, que entre
1920-22 publicou a trilogia Kristin Lavransdatter. Afortunadamente, consegui a
elogiada tradução inglesa de Tina Nunnaly (2005), que registrou a prosa simples
e direta da norueguesa.
Kristin Lavransdatter é filha do bem-sucedido nobre
rural Lavrans Bjørgulfsson. Acompanhamos a vida da voluntariosa loira desde a
infância até a morte. O narrador gasta capítulos para traçar com afinco o amor
e união entre pai e filha pra deixar mais poderoso e consequente o desentendimento
entre os 2, quando ela se apaixona por Erlend Nikulausson, rico proprietário,
mas com passado desabonador envolvendo até excomunhão – imagine isso no século
XIV. A obediente Kristin não resiste ao bad
boy Erlend em detrimento do prometido Simon Andresson, que a tratava como
criança. Erlend a trata como mulher, inclusive até a come antes do casamento.
De sangue quente, risonho (contrariando estereótipos de frieza escandinava) e
bastante sensual, Erlend é o tipo de homem que realmente jamais amadurece,
apenas envelhece e no medievo isso significava chegar mais ou menos aos 40 e
poucos.
A trilogia trata duma tentativa de imposição da vontade
individual, do livre arbítrio numa sociedade sufocada pela religiosidade e
pelos costumes. Não há muito convertida ao cristianismo, a Noruega vivia o fanatismo
e exagero devocional típicos dos neófitos. Cercada por e crente de dias santos,
horários pra orar e superstições cristãs, como a pia Kristin lidará com a
sensação de culpa e pecado impostos pela quebra da castidade antes do
matrimônio? Seu relacionamento com Erlend começa “errado” também porque desobedece
ao pai numa sociedade profundamente patriarcal. Lavrans está no sobrenome da
filha (Filha de Lavrans) e o nome de batismo da mulher é diretamente
relacionado a Cristo. Undset estabelece já no título o Complexo de Eletra e o
peso teocêntrico sobre as vidas da personagem.
O narrador cerca as escolhas “erradas” dela e dá pistas
mesmo antes do casamento de que a própria Kristin sentia que o negócio poderia ir
mal. Sua felicidade jamais é completa, porque a opressão do patriarcalismo
teocrático, que sedimenta o religioso em prática social, amarga a relação. Eles
sentem um T doido um pelo outro, mas isso sempre resulta em culpa, porém há
períodos em que a carne é fraca e se esquecem de senti-la, se dão bem, riem,
transam. Essa admissão do sexo parece ter causado espécie nos 1920’s. Hoje até
padre descreveria as coisas de modo mais aberto.
Alinhavando fatos políticos, práticas religiosas e o
cotidiano, o mergulho proporcionado por Undset é precioso para fãs da Idade
Média. Atualmente, o aspecto mais fascinante de Kristin Lavransdatter
provavelmente resida na apurada reconstituição da vida na Noruega do século
XIV. Experta em história escandinava e filha de arqueólogo, Undset não criou
nobres idealizados e apolíneos. Usando as informações de como a vida no medievo
era percebida no começo do século XX, a autora católica representa-os como
pouco mais do que sitiantes afluentes; tendo que trabalhar a terra, matar
animais, enfim, botar a mão na massa. Também vemos infestações de piolhos e
constatamos a pífia medicina de então, quase magia residual dos tempos pagãos,
mais presentes do que se poderia supor.
Falando bem particularmente, ajudou muito ter visitado
castelos escandinavos e escoceses pra imaginar as sensações vividas por Erlend,
enquanto prisioneiro em um deles. Foi muito legal ter batido a cabeça nos
umbrais nanicos, percorrido corredores de pedra e notado a falta de conforto dessas
construções. Não digo que pra se entender as coisas, seja necessária sempre a
experiência concreta – afinal, não quero pisar num caco de vidro pra aprender
como é ser profundamente cortado -, mas ter visto in situ as cabanas norueguesas com o telhado coberto de grama ajudou deveras na visualização das
cenas.
A narrativa desse medievo está mais pra saga ou pro
narrador benjaminiano do que pra roteirização de Game of Thrones. O timing, os cortes são diferentes; as
descrições de natureza possuem organicidade talvez rara no século XXI, mediado
pelas telas, que relegam a natureza à experiência vivida de longe e narrada já
de segunda mão. Pro leitor contemporâneo o problema maior está no excessivo
religioso da escrita. Ainda que de acordo com o teocentrismo reinante – Oslo se
chamava Kristiania até 1925 – por vezes enjoa tanto dogma, oração e discussões
teológicas.
Kristin Lavransdatter é só pros que não se importam com
narrativas lentas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário