Em vésperas de Quaresma, nosso historiador-cronista filosofa sobre as discussões a respeito do sexo de Deus, mas sérias do que supõem alguns. Crônica erudita é outra coisa, né?
SEXO DE DEUS.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Em discussões inúteis e sem nexos, sempre ouvimos a expressão
“ah, isso é como discutir o sexo dos anjos”. A inutilidade de debates sobre
inocuidades conduz a contendas desprezíveis e, nesses casos, uma boa saída é
apelar para citações que, afinal, apaziguam ânimos. Em leitura recente, porém,
deparei com uma expressão ainda mais complexa, referindo-se também ao universo
das questões não resolvíveis: “qual o sexo de Deus?”. O livro em questão é Sexo e Judaísmo, assinado pelo Dr Jayme
Landmann, publicado pela Editora da UERJ, Rio de Janeiro, em 1999. São páginas
de leitura enredante em que se aventa, pela ótica judaica, a relação entre a
reprodução humana e o destino religioso da sociedade. As primeiras páginas
discutem o tema da representação de divindades, em particular, como é cabível
aos judeus, de “Deus Pai”. Basta esse enunciado para se abrir um universo
enorme de dilemas afeitos à imagem de Deus. A qualquer um, mediante a evocação
das figurações do Pai, ocorre a cena magnífica do afresco da Capela Sistina,
obra exemplar de Michelangelo. A arrebatadora imagem do Pai, com braços
estendidos e com o dedo indicador quase tocando o do Filho é de beleza única. A
imponência da cena encanta e convence. O cenário teatral do entorno completa o
drama onde então um velho barbudo, de longos cabelos brancos e semblante grave,
dá sentido a Cristo, filho do Criador em sua missão terrena. Nuvens e anjos em
movimento integram a situação que, afinal, fixa a noção de que o Deus Pai é um
Senhor severo, soberano e dominador. Sem dúvida, a ideia de um Deus bravo,
justiceiro, onipotente, onipresente e onisciente, instruiu lições de
catolicismo. O que me impressiona nessa representação é que o rosto tranquilo e
amistoso do Filho não convence tanto. A partir de Michelangelo, a imagética
religiosa cristã não se cansa de proceder a variações sobre o mesmo tema.
Dr. Landmann, foge do debate sobre a imagem do Pai, do Filho
e do Espírito Santo. Na direção contrária, o que faz é demonstrar que para os judeus
interessava destruir a tradição anterior que apregoava a existência de deusas
matriarcas. Elegendo o masculino como o sexo do poder, os judeus estabeleceram
o monoteísmo com premissa e os homens deveriam agradecer por ser “imagem do
Criador” enquanto as mulheres por “ser imagem do espírito”. Mas o sentido da
imagem não seria física, mas sim moral. Desde Eva, as mulheres foram associadas
aos “desvios dos homens” e por isso próximas do pecado, cabendo ao masculino a
condução para evitar males. É verdade que mesmo entre os judeus não há consenso
sobre o sexo de Deus. Uns acham que é exclusivamente masculino, outros que é
andrógeno, existindo aqueles que o julgam duplo e até mesmo feminino, mas isso
não tem a ver com a figura humana, assim, há unanimidade em não aceitar
figuração de Deus – como aliás os islâmicos também fazem. A base está na
Escritura, exatamente em Deut. 4,12 e 4,15-16 onde fica estabelecido que “para
que vós não vos comparais e vos façais alguma escultura, nem alguma semelhança de
imagem, figura de macho ou de fêmea”. É obvio que as interpretações variaram,
em particular tomando-se por base a passagem do Gên. 1,27 que reza “E criou
Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea, os criou”.
É, pois, por essa interdição que entre os judeus não pode haver representação
figurativa do Criador. A imaterialidade do Pai, contudo, é complexa, pois Deus
ouve, fala, gesticula, tem pés e mãos, mas não cumpre outras funções humanas
como: comer, urinar, defecar. Ao contrário dos deuses gregos, o Pai não teria
relações sexuais, família e não seria passível de contradições, dono exclusivo
da “verdade e da vida”. Isso intriga e chega a propor uma das heresias mais
condenáveis pelos ortodoxos que vêem na mediocridade humana a inversão do caso,
pois segundo os “desvidados”, nós humanos é que criamos um Deus à nossa imagem
e semelhança. Não deixa de ser irônico encerrar este retraço analítico evocando
o debate sobre o sexo dos anjos... ou melhor o sexo de Deus.
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