terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

TELINHA QUENTE 199

Roberto Rillo Bíscaro

Depois do estabelecimento da burguesia como classe dominante e da Revolução Industrial, acentuou-se a supremacia do pensamento cientifico racional e higienista – mesmo que volta e meia o obscurantismo e a exclusão travistam-se de objetividade cientifica, vide os absurdos nazistas, que tinham até conselhos de ética.
Na Inglaterra, uma das muitas medidas pensadas pra coibir amadores de experimentarem anatomicamente com cadáveres foi uma lei que permitiria que apenas escolas e profissionais tivessem acesso a corpos e aqueles que não tivessem familiares seriam automaticamente enviados pra dissecação nas aulas de anatomia. Dissecação era muito mal vista na época, porque se temia a danificação corporal, afinal, como ressuscitariam no Juízo final? Mas a questão ia muito além pros críticos: permitir que os corpos dos pobres fossem assim violados pela ciência equivalia a aceitar um universo sem Deus, onde o homem arvorava-se no direito de até tentar trazer os mortos de volta à vida. Sim, havia uma facção de estudiosos, chamados galvanistas, que tentavam ressuscitações mediante eletricidade. A situação era fascinantemente complexa, mas não interessa pruma postagem sobre TV.
Frankenstein (1818), de Mary Shelley, nasceu nesse contexto quando ciência e tecnologia ameaçavam tomar o lugar do Criador. Frankenstein, o Prometeu moderno, pega partes de cadáveres e mediante eletricidade dá vida a um ser deforme e socialmente repudiado. Frankenstein é o cientista, não a criatura; a ênfase era no primeiro e nunca devemos esquecer também que o Dr. Victor operava nos moldes da alquimia, portanto o que estava sendo realmente criticado não era a ciência e sim o suposto obscurantismo medieval. Mas isso também não pode ser estendido numa postagem sobre TV.
Pelo exposto, o leitor percebe que o que há em jogo nos 6 sombrios capítulos de The Frankenstein Chronicles (TFC, 2015) é assaz complexo. Exibida pela pequena ITV Encore, provavelmente esse mashup de Shelley com Inspector Morse foi visto por menos público do que merecia. Malgrado certa lerdeza e propensão a priorizar o clima sobre a trama, TFC é inteligente, criativa e tem um último capítulo espetacular.
Investigando tráfico de drogas às margens do Tâmisa, o inspetor John Marlott (Sean Bean, o Ned Stark de Game of Thrones) encontra um cadáver duma garota. No necrotério, descobre-se que se trata dum composé de distintos corpos. Era 1827 e temia-se que o assassinato envolvendo tamanho grau de conhecimento anatômico fosse pretendido como difamatório aos ascendentes médicos. Marlott então é designado pra investigar essa cópia de Frankenstein atuando em Londres. Acontece que na época os inspetores não tinham a autonomia dum Morse e Marlott ainda por cima tinha sífilis e fazia tratamento com mercúrio, cujo efeito colateral eram alucinações. Perfeito prum detetive atormentado, mas convém lembrar da carga simbólica que a sífilis tinha na época.
Doente e subserviente, mas com heroica vontade de descobrir o culpado, Marlott perambula e mergulha numa Londres georgiana suja, mal caiada e cheia de gente deformada e imunda. Se seu negócio é século XIX idealizado, fuja de TFC. As ruas são embarreadas (faltaram as montanhas de estrume) e nem as casas das leides e lordes são à Downton Abbey. É tudo bastante cru, sem vida e lúgubre e o inglês também não é o de Lord Grantham, embora respeite-se a diferença de classe nos sotaques.
Como em 1827 a autora do romance que originou os crimes ainda vivia, Mary Shelley participa da trama (Anna Maxwell Martin, a Miss Summerson, de Bleak House, amo!), mas pra mim nada acrescenta; coisas da pós-modernidade. William Blake e um jornalista chamado Boz (Charles Dickens usava esse pseudônimo no começo da carreira) também são gente “de verdade” mixadas nessa ficção. Na verdade, uma das pistas pra resolução do mistério está nos quadros de Blake.
Esse imbróglio político, pessoal, artístico, ético, religioso caminha a passos lentos e exige a paciência de quem está acostumado às narrativas mais antigas, até culminar numa reviravolta sensacional no capítulo final, gótica até o fundo d’alma. Inglaterra rules, não tem jeito!

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