Roberto Rillo Bíscaro
Depois do estabelecimento da burguesia como classe
dominante e da Revolução Industrial, acentuou-se a supremacia do pensamento
cientifico racional e higienista – mesmo que volta e meia o obscurantismo e a
exclusão travistam-se de objetividade cientifica, vide os absurdos nazistas,
que tinham até conselhos de ética.
Na Inglaterra, uma das muitas medidas pensadas pra coibir
amadores de experimentarem anatomicamente com cadáveres foi uma lei que
permitiria que apenas escolas e profissionais tivessem acesso a corpos e
aqueles que não tivessem familiares seriam automaticamente enviados pra
dissecação nas aulas de anatomia. Dissecação era muito mal vista na época,
porque se temia a danificação corporal, afinal, como ressuscitariam no Juízo
final? Mas a questão ia muito além pros críticos: permitir que os corpos dos
pobres fossem assim violados pela ciência equivalia a aceitar um universo sem
Deus, onde o homem arvorava-se no direito de até tentar trazer os mortos de
volta à vida. Sim, havia uma facção de estudiosos, chamados galvanistas, que
tentavam ressuscitações mediante eletricidade. A situação era fascinantemente
complexa, mas não interessa pruma postagem sobre TV.
Frankenstein (1818), de Mary Shelley, nasceu nesse
contexto quando ciência e tecnologia ameaçavam tomar o lugar do Criador.
Frankenstein, o Prometeu moderno, pega partes de cadáveres e mediante
eletricidade dá vida a um ser deforme e socialmente repudiado. Frankenstein é o
cientista, não a criatura; a ênfase era no primeiro e nunca devemos esquecer também
que o Dr. Victor operava nos moldes da alquimia, portanto o que estava sendo
realmente criticado não era a ciência e sim o suposto obscurantismo medieval.
Mas isso também não pode ser estendido numa postagem sobre TV.
Pelo exposto, o leitor percebe que o que há em jogo nos 6
sombrios capítulos de The Frankenstein Chronicles (TFC, 2015) é assaz complexo.
Exibida pela pequena ITV Encore, provavelmente esse mashup de Shelley com Inspector Morse foi visto por menos público
do que merecia. Malgrado certa lerdeza e propensão a priorizar o clima sobre a
trama, TFC é inteligente, criativa e tem um último capítulo espetacular.
Investigando tráfico de drogas às margens do Tâmisa, o
inspetor John Marlott (Sean Bean, o Ned Stark de Game of Thrones) encontra um
cadáver duma garota. No necrotério, descobre-se que se trata dum composé de distintos corpos. Era 1827 e
temia-se que o assassinato envolvendo tamanho grau de conhecimento anatômico
fosse pretendido como difamatório aos ascendentes médicos. Marlott então é designado
pra investigar essa cópia de Frankenstein atuando em Londres. Acontece que na
época os inspetores não tinham a autonomia dum Morse e Marlott ainda por cima
tinha sífilis e fazia tratamento com mercúrio, cujo efeito colateral eram
alucinações. Perfeito prum detetive atormentado, mas convém lembrar da carga
simbólica que a sífilis tinha na época.
Doente e subserviente, mas com heroica vontade de
descobrir o culpado, Marlott perambula e mergulha numa Londres georgiana suja,
mal caiada e cheia de gente deformada e imunda. Se seu negócio é século XIX
idealizado, fuja de TFC. As ruas são embarreadas (faltaram as montanhas de
estrume) e nem as casas das leides e lordes são à Downton Abbey. É tudo
bastante cru, sem vida e lúgubre e o inglês também não é o de Lord Grantham,
embora respeite-se a diferença de classe nos sotaques.
Como em 1827 a autora do romance que originou os crimes
ainda vivia, Mary Shelley participa da trama (Anna Maxwell Martin, a Miss
Summerson, de Bleak House, amo!), mas pra mim nada acrescenta; coisas da
pós-modernidade. William Blake e um jornalista chamado Boz (Charles Dickens
usava esse pseudônimo no começo da carreira) também são gente “de verdade”
mixadas nessa ficção. Na verdade, uma das pistas pra resolução do mistério está
nos quadros de Blake.
Esse imbróglio político, pessoal, artístico, ético,
religioso caminha a passos lentos e exige a paciência de quem está acostumado
às narrativas mais antigas, até culminar numa reviravolta sensacional no
capítulo final, gótica até o fundo d’alma. Inglaterra rules, não tem jeito!
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