Sherlock Holmes, Jekyll e Hyde, Frankenstein, Dorian Gray
e parte da patota do Drácula invadiram as telinhas britânicas – portanto, de
boa parte do planeta – duns anos pra cá. Mais do que modinha de misturar/renarrar
personagens clássicas, essa repopularização vintage
tem a ver com as criações terem passado pra domínio público. Em época de
retração mundial do capital, melhor poupar nos direitos autorias, além de ter à
mão tramas e personagens já presentes em milhões de inconscientes. Quantos
sequer sabem que Frankenstein no livro é o criador, não a criatura, mas
conhecem a personagem devido a incontáveis aparições e referências em diversos
produtos culturais? Ressignificar clássicos também já sai na dianteira na hora
da divulgação; pautas garantidas em tudo quanto é canal midiático. Quando se
tem o prestígio/equipe de marketing
da tradicional BBC, então, facilita ainda mais.
O universo ficcional livre de direitos autorais mais
recente a entrar na ciranda foi o de Charles Dickens. Entre dezembro e
fevereiro, a BBC1 exibiu Dickensian, que reuniu personagens menores de diversos
de seus folhetins em um mashup original,
emulador do caráter noveleiro do venerável/venerado autor britânico. Mr.
Scrooge, d’Um Conto de Natal, cobrando Mr.
Barbary, de Bleak House e recusando associar-se a Fagin, de Oliver Twist. Mrs.
Bumble, de Oliver Twist, em esquemas de alpinismo social pra cima de Mr.
Gradgrind, de Hard Times. Toda essa gente mora mais ou menos próxima pra ficarem
fáceis os encontros “casuais” nessa Londres de ruas pavimentadas e limpas, mas
sempre envolta em neblina, criada por Tony Jordan, amante de Dickens, mas
escritor-emérito da soap-instituição
britânica EastEnders (e bingo, descobrimos porque todo mundo mora num mesmo
beco, independentemente de sua classe social). Tipo, Boz encontra Coronation
Street e isso não é nada herético, posto Dickens ser bisavô das atuais novelas.
Como típico folhetim, Dickensian desenvolve diversos fios
de tramas e núcleos de personagens, que eventualmente podem se entrecruzar.
Mas, tem que ter algo que bote o motorzinho do drama pra funcionar e isso é o
assassinato de Jacob Marley, o agiota. Dickensianos poderão se lembrar que em
Um Conto de Natal é o fantasma de Marley que fará Mr. Scrooge ver a luz. Quem
investigará sua morte é o Inspetor Buckett, de Bleak House. Também há o
falecimento do pai de Amelia e Arthur Havisham, que deixa quase tudo pra
perspicaz Amelia, provocando ódio no irmão, que se alia ao inescrupuloso Mr.
Compeyson, mas logo descobre que criara um monstro. Miss Havisham é superamiga
da boazinha Honoria Barbary, apaixonada pelo Capitão Howdan, mas o pai da moça
está em sérios apuros financeiros – como no bom e velho Dickens, o protagonista
da história é o dinheiro, sempre – , então será que não conviria casar-se com
Sir Deadlock? Como se vê, Dickensian funciona como prequel de obras como Bleak House e Great Expectations e se a
intenção é contar a formação da gélida Lady Deadlock ou da amarga Miss
Havisham, podemos esperar histórias de quebrar o coração.
Sem mexer na mitologia das personagens principais da
galeria dickensiana – só considerei herética a ressurreição de Nell! –
Dickensian introduz aos desconhecedores personagens que talvez queiram explorar
l/vendo mais Dickens; deixa curioso o conhecedor médio e pode proporcionar bons
projetos acadêmicos a expertos, que procurarão referências temporais nos contos
e romances pra provar porque X e Y não poderiam ser coetâneos. Em princípio,
parece que todos saem ganhando.
O problema é que 20 capítulos, ainda que de apenas meia
hora, pareceram demais por questões de ritmo. Bastante da minissérie é apenas
morno e isso evidencia-se cortantemente no estupendo episódio derradeiro,
transbordante de pathos de ensopar
lenço, do qual Biso Dickens deve ter se orgulhado no céu dos escritores de
negócio. Não dá pra deixar de imaginar em retrospecto, quão melhor a série
teria sido, se fosse sempre naquele nível.
Mesmo assim, vale conferir Dickensian, especialmente se
você curte produções “de época” britânicas com meninas falando “papa” e a
idealizada fleuma do país, temperado com os vulgaretes de sujeira de maquiagem,
supostamente acrescidos como alívio cômico. Pra mim esse último elemento enche
o saco, mas há quem goste.
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