O encontro de jornalista que perdeu irmão mutilado com feiticeiro que sacrifica albinos
Stéphane Ebongue fugiu de Camarões por causa da cor de sua pele ─ seu albinismo o transformou em alvo de ataques devido à crença de que pessoas como ele têm poderes especiais.
Anos mais tarde, ele voltou ao seu país de origem para confrontar um feiticeiro sobre a terrível prática de usar partes dos corpos de albinos para poções mágicas.
De terno e carregando uma pasta, Ebongue está a ponto de percorrer uma trilha que avança para dentro de uma floresta. Por causa da deficiência visual ligada a seu albinismo, ele usa óculos escuros, que acabam por esconder também seu nervosismo.
"Meu coração está batendo rápido. Nunca vim a um lugar como esse antes", diz ele.
Ebongue espera obter respostas que vem buscando durante anos. A trilha leva à casa de um feiticeiro que vende poções usando partes dos corpos de albinos.
"Gostaria de saber por que continuamos a ser mortos. Talvez o segredo esteja no final desta trilha", diz ele.
Ebongue é jornalista, um homem racional que trabalha com fatos. Não acredita em magia negra, mas está profundamente transtornado com o encontro.
Por toda a África, em países como a Tanzânia, Malauí e Camarões, há uma crença de que pessoas com albinismo trazem sorte ou possuem poderes mágicos. As consequências para quem têm a anomalia são devastadoras.
"Partes do corpo dos albinos, como coração, cabelo ou unhas, são usadas como poções mágicas. Por exemplo: fertilizar o solo, tornar-se invencível, vencer eleições ou um jogo de futebol", diz Ebongue.
"Esse é o motivo pelo qual os albinos são mortos ou mutilados".
Segundo um relatório recente da ONU, partes dos corpos de albinos podem alcançar preços que vão de US$ 2 mil por um membro a US$ 75 mil pelo corpo inteiro.
Há três décadas, Ebongue tinha 15 anos quando seu irmão mais velho, Maurice, que também tinha albinismo, desapareceu.
"Ele saiu de casa pela manhã e nunca mais voltou", disse Ebongue.
Dias depois, a família descobriu o cadáver de Maurice, então com 18 anos, no meio de arbustos. Ele foi mutilado. "Seu estômago estava aberto ─ não sabia o que estava faltando lá dentro", diz Ebongue.
Os pais de Ebongue tentaram dar aos dois filhos albinos uma infância normal ─ eles eram tratados de forma similar às outras crianças.
Ele só percebeu ser diferente das outras crianças quando foi para a escola.
Seus colegas, todos negros, lhe perguntavam: "Por que você é o único branco da classe?"
"Eles vinham tocar a minha pele pensando que eu tinha passado talco", relembra.
Ebongue teve brigas na escola, mas seus pais, ambos professores, sabiam o que fazer.
"Eles entendiam o problema e me incentivaram a estudar mais".
"Minha vingança era que eu sempre fui o primeiro da classe".
O problema é que, assim como muitas pessoas que possuem albinismo, Ebonque tem visão limitada. Ele tinha dificuldade para ler letras pequenas ou o que estava escrito no quadro negro, mesmo se sentasse na frente da sala de aula.
"Muitas vezes eu entregava a minha prova em branco", disse ele. "Não porque eu não sabia responder às perguntas, mas porque as letras eram tão pequenas que eu não conseguia enxergar nada. Entregava minha prova e chorava".
Ele jurou a si mesmo que um dia criaria uma biblioteca para pessoas com deficiência visual.
Ebongue decidiu estudar jornalismo e literatura inglesa na universidade, onde ele era o único com albinismo entre 10 mil alunos. Sua condição singular o transformou em ponto de referência na comunidade local. "As pessoas diziam: 'Me encontrem ali perto da casa do albino'", contou.
Em 2007, aos 37 anos, Ebongue estava casado e trabalhando como jornalista em Buea, perto do Monte Camarões, um dos vulcões mais ativos da África.
E foi o vulcão que provocou uma grande crise na vida de Ebongue.
"Acredita-se que quando há uma erupção (Epasamoto), é porque o deus da montanha está zangado", diz Ebongue. "Para acalmá-lo, eles precisavam do sangue de um albino".
Quando o vulcão sofreu erupção em 1999, um mar de lava desceu a montanha, parando pouco antes de Buea. Não houve mortos, mas os médicos alegaram que a cidade havia sido poupada somente por causa do sacrifício de albinos.
Em 2007, devido aos temores de uma erupção, as pessoas começaram a fazer "todo o possível" para evitá-la. Nesses momentos, que Ebongue chama de "psicose geral", albinos como ele têm de se esconder.
Temendo por sua própria vida, Ebongue decidiu sair do país. Sua mulher e seus três filhos, que não tem albinismo, estavam seguros - eles poderiam acompanhá-lo mais tarde, pensou ele.
Ebongue descobriu um capitão que lhe permitiu subir a bordo de um navio carregando madeira à Itália, e passou 33 dias escondido no porão escuro.
"Me fazia perguntas para as quais não há respostas, tudo era muito difícil mentalmente e psicologicamente", disse ele.
"Estava sofrendo. Deixei minha mulher e meus filhos, meu emprego, meu país e meus amigos", acrescentou.
Depois de chegar à Gênova, Ebongue ganhou asilo por questões humanitárias.
Viver na Itália era libertador. Pela primeira vez na vida, sua cor de pele era uma vantagem - diferentemente de outros camaroneses, Ebongue nunca foi parado pela polícia.
Quando eu vivia na África, tinha três inimigos: o sol, a aversão das pessoas e o medo", disse ele.
"Aqui, não temos tais problemas. Eu me sinto mais livre, livre para circular, não sinto vergonha".
No país que o abrigou, Ebongue descobriu dois itens que mudariam para sempre sua vida: o protetor solar e a lupa.
Ele não conhecia nenhum dos dois - quando viu o que eles podiam fazer, caiu em prantos.
Antes disso, Ebongue demorava dois meses para ler um livro. Com a ajuda da lupa, leu dez em um mês.
"Estava tentando compensar o tempo perdido", disse ele.
A experiência fortaleceu ainda mais seu sonho de criar uma biblioteca nos Camarões.
Ebongue rapidamente aprendeu italiano e estabeleceu-se em Turim, onde passou a ensinar a língua a imigrantes recém-chegados, e se tornou amigo do jornalista local Fabio Lepore.
Os dois homens se aproximaram porque Lepore também possui defiência visual. No seu caso, contudo, deveu-se à degeneração macular - a Doença de Stargardt. Lepore tem apenas 2/20 de visão em ambos os olhos. "Tive a sorte de perder a minha visão quando tinha 16 anos, então consegui aprender a fazer tudo sem ela", diz. "Não posso dirigir um carro - mas posso saltar de paraquedas".
Os dois homens começaram a trabalhar em um documentário sobre Ebongue, chamado as Viagens de Jolibeau - Jolibeau é o apelido pelo qual ele é conhecido nos Camarões.
Foi por essa razão que Ebongue decidiu confrontar seu passado e se encontrar com um feiticeiro.
"Estava lá como um jornalista", diz ele. "Queria encontrar-me com alguém que poderia me explicar as raízes dessa crença, e logo pensei em um xamã local."
Ao mesmo tempo, ele sabia que muitas pessoas com albinismo - entre eles seu irmão mais velho - morreram nas mãos de pessoas como aquele homem que ele estava prestes a conhecer.
O feiticieiro
Depois de caminhar 20 minutos, Ebongue e Lepore se deparam com um clarão dentro da floresta, onde peças de roupa secam próximo a uma cabana de madeira rudimentar.
Em seguida, o feiticeiro aparece para saudá-los, usando camisa e bermudas de cor laranja. Ele cumprimenta os dois, e olha para Ebongue de maneira estranha.
"Você pode ver como o feiticeiro olhou para ele, era como se tivesse visto um tesouro", disse Lepore.
"Ele olhou para ele como uma leão olha para sua presa".
Os homens acompanham o feiticeiro à cabana de madeira onde recebe potenciais clientes. Eles andam em meio a restos de um ritual que ele havia realizado na noite anterior - um tipo de sacrifício animal.
Ebongue presenteia o feiticeiro com uma garrafa de uísque e lhe entrega 5,005 francos (cerca de R$ 30) como parte do combinado. Em contrapartida, o feiticeiro dá a Ebongue alguns galhos para segurar - mas não explica por quê.
Cumpridas as formalidades, Ebongue faz a primeira pergunta. "Por que os albinos são encarados segundo as tradições deste país?"
Mas o feiticeiro não está prestando atenção. Ele olha atentamente para o tesouro sentado à frente dele.
"Você não sabe o seu valor. O quanto vale", diz ele a Ebongue.
"Há forte demanda por albinos como você. Do seu cabelo a seus ossos", acrescenta.
"A procura é tão grande que se soubermos de um albino enterrado em algum lugar, tentamos saber a exata localização, para recuperar partes do corpo que são realmente importantes para nós".
Mantendo as emoções sob controle, Ebongue continua a fazer perguntas. O feiticeiro diz receber até quatro clientes por semana em períodos de maior movimento, e que todos os tipos de pessoas pedem por "poções de albinos" - de fazendeiros esperando por uma melhor colheita a mulheres tentando seduzir homens brancos.
"Você está ciente do fato de que o número de albinos está diminuindo e que não é certo matar humanos para fazer sacrifícios?", pergunta Ebongue.
"As pessoas vão em busca de dinheiro. Elas matam albinos não pelo prazer de matá-los mas para ganhar dinheiro", rebate o feiticeiro.
"Você não tem medo de que um dia a polícia bata à sua porta por causa dos rituais que você realiza com humanos?", pergunta
"O que a polícia quer? Dinheiro. Se um dia baterem à minha porta, vamos negociar".
Depois de uma sabatina que dura em torno de uma hora regada a alguns copos de vinho, os visitantes deixam o local.
"A única coisa que eu queria era sair dali", confessa Ebongue.
E toda vez que assiste novamente ao vídeo, fica furioso.
"Cada vez que eu assisto à entrevista, fico chocado e me pergunto por que não reagi", diz ele.
Se ele pudesse voltar, ele faria tudo diferente. "Eu perguntaria a ele se ele está iludindo as pessoas. Seria mais ofensivo, mais agressivo".
Em vez de obter uma resposta à pergunta sobre por que pessoas como ele são perseguidas em Camarões, tudo o que ele encontrou foi um homem disposto a ganhar dinheiro.
Ebongue agora quer parar de falar sobre as superstições e começar a discutir os problemas reais do albinismo: saúde e educação.
O maior vilão é o sol ─ as Nações Unidas dizem que na África muitas pessoas com albinismo morrem de câncer de pele entre as idades de 30 e 40 anos. O problema é agravado pelo fato de que muitos trabalham ao ar livre em empregos inferiores, já que, sem poder ver, abandonaram a escola.
Graças à generosa doação de 11 mil euros (R$ 44 mil) de um italiano, Ebongue conseguiu montar a biblioteca que tanto sonhava quando criança.
Na Biblioteca Le Pavillon Blanc, na maior cidade de Camarões, Douala, pessoas com deficiência visual podem ler livremente com a ajuda de lupas e outros utensílios. Cerca de 70 pessoas já se afiliaram à biblioteca, muitas das quais têm albinismo. Elas ainda têm de pagar uma pequena taxa - mas Ebongue espera que o governo subsidie seu projeto em breve.
Seu objetivo é ajudar pessoas com albinismo a tornarem-se bem sucedidas.
Ele ensina italiano e apresenta podcasts para uma rádio online chamada Cameroon Voice, mas dedica a maior parte de seu tempo e energia à biblioteca.
Ele viaja aos Camarões regularmente para supervisionar o projeto e visitar sua família, que não teve autorização para emigrar para a Itália. Depois de seis anos de espera, seu casamento ruiu. Mas Ebongue diz não se sentir mal por isso.
"No fim das contas, minha história tem um final feliz. Fui para a escola, tenho um emprego, fui casado, tenho filhos", diz ele. "Há muitas pessoas que não tem a mesma sorte".
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