Roberto Rillo Bíscaro
Há alguns anos a Biblioteca Pública Municipal de
Penápolis (SP) desenvolve o projeto Literatura em Foco, que aborda obras da
lista de livros pedidos nos vestibulares da USP e UNICAMP. Professores de
literatura e diletantes são convidados a analisá-los. Colaboro sempre que
posso; já dei aulas sobre Memórias de um Sargento de Milícias e Vida Secas a
alunos muito interessados, anotadores e inquisitivos.
Dia 9 de junho, falarei sobre a peça O Rei da Vela,
escrita por Oswald de Andrade em 1933, publicada em 1937, mas encenada apenas 3
décadas depois, pelo Teatro Oficina. O retrato do agiota Abelardo, rei da
primitiva vela nos tempos da moderna eletricidade, e sua aliança com setores
decadentes da aristocracia rural e sujeição ao ianque Mr. Jones infelizmente
cai no chavão “mais atual que nunca”.
Na sanha de atacar a burguesia com suas recentemente
adquiridas ideias marxistas, Oswald carrega nos tons grotescos pra representar
essa classe. Um dos traços de decadência dos ricos e poderosos seria a libertinagem
sexual, mas o que interessa aqui é a homossexualidade.
Os 3 filhos do fazendeiro falido Coronel Belarmino são
nomeados com alusões a sua sexualidade: Totó Fruta do Conde; Joana, conhecida
como João dos Divãs e Heloisa de Lesbos. O primeiro é uma bichona louca que
fala no feminino; “sou uma fracassada” repete em forma de bordão mais
pertinente em comédia de Arthur Azevedo do que na pretendida vanguardice d’O
Rei da Vela. Joana parece ter a alcunha apenas pra chocar, porque a personagem
sequer age segundo essa homo-orientação. Heloisa tem seu nome advindo da ilha
onde nasceu a poetisa grega Safo, famosa por poetizar o amor entre mulheres. É
preciso explicitar que da ilha de Lesbos vem a palavra lésbica? Heloisa entra
no palco vestida de homem, mas a peça inteira passa nas mãos de Abelardo e de
Mr. Jones.
O uso da homossexualidade como sinal de decadência vem da
ideia de que é um “desvio” da sexualidade considerada “normal”, a saber a
heterossexualidade monogâmica. Muito dessa patologização nasceu de
interpretação equivocada (fraudulenta?) das ideias de Freud, por gente que
misturou moral pré-concebida na história. Como a maioria nunca leu o Pai da
Psicanálise, mas apenas ouviu dizer de seus genéricos, a noção de homossexualidade
consagrou-se, tanto na direita, quanto na esquerda. Nos anos 70, a Associação
Norte-Americana de Psiquiatria tirou a homossexualidade de sua lista de
enfermidades, mas não são poucos os que ainda a consideram como tal.
(Re)Lendo alguns textos sobre O Rei da Vela pra fermentar
a aula, não me surpreendi que críticos das antigas, como Décio de Almeida Prado
e Sábato Magaldi dancem a música de Oswald acriticamente e apontem a
homossexualidade como um dos sintomas da “sujeira” burguesa. De outra geração,
até dá pra entender suas noções; embora compreender não anule o lamentar. Menos
inteligível é a aceitação passiva dessa ideia preconceituosa em trabalhos que
se querem mais modernos como a dissertação de mestrado O modernismo teatral de Oswald de Andrade: uma análise da peça “O Reida Vela”, de Fernanda de Miranda Martins, que, tão recentemente quanto 2008
compra sem pestanejar a noção de homossexualidade como sintoma de decadência.
Não se trata de caçar bruxas e queimar Oswald de Andrade
na fogueira da correção política anacrônica, como quiseram fazer com o racismo de Lobato no episódio das Caçadas de Pedrinho. Pedir o banimento de sua obra é
tão retrógrado quanto o ambiente descrito na peça, mas é preciso problematizar
essa posição do autor nas análises e quiçá nos exames vestibulares passíveis de
terem questões sobre a obra.
Que ele tenha usado esse
traço como sinônimo de sem-vergonhice não significa que devamos aceitar. Antes,
qualquer análise deve ressaltar o limite tanto de direita quanto de esquerda de
lidar com a homossexualidade e a dificuldade histórica que essa orientação
sexual tem enfrentado. Sem essa discussão e admissão, difícil pensar num mundo
menos discriminatório contra albinos, gordos, mulheres, afrodescendentes,
porque enquanto houver um grupo discriminado, a sociedade será potencialmente
preconceituosa em relação a tudo considerado desviante ou diferente.
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