Roberto Rillo Bíscaro
Em 1982, um grupo da interiorana Sheffield tomou as
paradas britânicas de assalto com o álbum The Lexicon Of Love, que faz jus ao
título pretensioso por se constituir numa das sínteses mais perfeitas de
liquefação pop de influências tão díspares como synthpop, Northern Soul, R’n’B,
orquestração à Burt Bacharach, Chic, Bowie, New Romantic, funk e mais, que citarei ao
longo do texto. Aliado a isso, forte sentido de moda, que hoje parece brega,
mas na época era podre de chique com paletós de lamê dourado. Ostentação era na
era Thatcher/Reagan, my dear! O álbum é um léxico musical da primeira metade
dos 80’s e continua mortífero, ainda que se possa criticar a produção pesada,
mas isso era característica do período que o ABC ajudou a definir. Em sua
defesa, The Lexicon of Love (TLOL) nem é tão entulhado como sucessores tipo
Arcadia.
Com tema unificado e trechos repetidos, TLOL não é
conceitual, mas apresenta unidade mais associada ao prog rock do que ao pop. E
quem disse que synthpop não é filho de suruba punk com Kraftwerk e pitadas de
tecladice prog? O produtor de TLOL foi Trevor Horn, mago tecnopop, mas que
sempre namorou o sáurio progressivo Yes. E não é que reouvindo TLOL pela
zilionésima vez, em 2016, o começo de Date Stamp lembra a caixa registradora do
Pink Floyd, de 1974, mas também prenuncia o Frankie Goes To Hollywood, de 84?
De 11 canções, 7 são implacavelmente dançantes no
espectro da música negra. Claro que há as clássicas Poison Arrow e The Look Of
Love, Part One (quer coisa mais prog do que esse “parte um”?), mas não há como
ficar inerte ao som do funk desloca-coluna de Tears Are Not Enough, ao baixo
belisca-ouvido de Many Happy Returns (I know democracy, but I know what’s
fascist!) ou ao synthsoul de Show Me.
Em época de concorrência dura de vocalistas-filhos de
Bryan Ferry, como Tony Hadley, do Spandau Ballet, o ABC tinha o blue-eyed soulman Martin Fry, cantando
sobre as agruras do amor e jogando nos ouvidos e olhos de quem quisesse
ouvir/ver seu débito pra com o Roxy Music dos últimos dias. Zeitgeist nervoso:
All Of My Heart é totalmente More Than This, single de Avalon, canto do cisne do
Roxy, lançado em abril de 1982. TLOL saiu em junho.
O finalzinho de TLOL destoa um bocado do conjunto, mas
traz outras facetas, sendo que 4 Ever 2 Gether é a expressão da clássica
contradição formal de parte do pop oitentista: synthpop gélido-robótico, marca
registrada da cultuada ZTT Records, de Horn, como cama pra vocais apaixonados e
dramáticos de quem cresceu ouvindo glam
rock e música negra ianque ou do norte inglês. Amo aquele teclado Jean
Michel Jarré fase Oxygene!
Theme From “Mantrap” fecha o clássico com releitura de
Poison Arrow em clima de cabaré jazz, não descabido na New Bossa inglesa da
época, tipo Everything But The Girl.
The Lexicon Of Love é mapa,
bússola, compasso e astrolábio da primeira metade oitentista. Só por isso seria
indicado pra amantes da época, mas torna-se obrigatório pra quem ama pop
acessível, dançável, mas consequente.
34 anos depois, clamando por ser comparado e
inferiorizado, Martin Fry usa o nome ABC pra lançar The Lexicon Of Love II. Da
banda original, só restou o vocalista de 58 anos, que já não usa paletós de
lamê, mas continua impecável e loiro. Como não comparar os 2 álbuns se levam o
mesmo título? Ser inferior é inerente, porque esta sequela sobre amor na
meia-idade não poderia ter o mesmo papel de definidor de tendência, como seu
par de 1982. Nada disso é defeito. TLOLII não faz feio; pelo contrário, são 11
faixas, que no seu pior são agradáveis.
Dada a importância de TLOL, a imprensa britânica não pôde
negligenciar sua parte II. Desde o sisudo The Times ao tabloide Daily Mail todo
mundo falou de Fry, que não tem mais alcance pra falsetear yippee-yi-yippee-yi-yays, mas segue com voz bem pouco degradada.
Horn não pode produzir por conflito de agendas, então o vocalista mesmo assumiu
a função. Da equipe original, voltou Anne Dudley, responsável pelos fartos e
luxuosos arranjos de cordas, que introduzem até canções dançáveis. Nos 80’s, a
moça por trás do Art Of Noise era crista da modernidade; agora difícil não
notar que seus arranjos dão ar datado a certos trechos. Tem hora que parece que
eu estava ouvindo a trilha-sonora de Buster, de 1988. Nas canções lentas
funciona, mas introduzir a locomotiva dançável Viva Love com tantas cordas
melosas é desperdício e meio cafona.
As 2 canções iniciais, The Flames Of Desire e Viva Love,
criam a expectativa de álbum dançante, informado por disco music, mas como se estivéssemos em 1983. Dão vontade de sair rodopiando
à Flashdance, sorrindo pra câmeras imaginárias. Mas, talvez considerando a
idade do cantor e de boa parcela do seu público, a ênfase de TLOLII é R’n’B
lento ou mid-tempo. Singer Not The Song é synthpop dançável com vozona à Bowie,
mas os teclados estão mais eletro. Mas
a grandiosidade das cordas de Dudley dá o ar vintage necessário. I Believe In Love começa bluesy antes de agitar-se. Deve ser coisa de DNA geracional, mas
quando Fry canta I believe in love
imagino que se encaixaria no modo como seu coetâneo 80’s Jimmy Somerville
faria.
Brighter Than The Sun e Kiss Me Goodbye têm batida mais
começo dos anos 90, provavelmente a coisa mais moderna de TLOLII; a última
poderia estar num dos álbuns iniciais de Lisa Stansfield. Em termos de canção
lenta, o ponto alto é Ten Below Zero, baladaça soul, coisa de quem passou a tenra adolescência 70’s escutando
Marvin Gaye e Diana Ross e Northern Soul. Paul Weller mataria pra ter a canção
no álbum do Style Council, de 1983.
Claro que TLOLII é
saudosista e abaixo do nível de seu predecessor. Mas, vale escutá-lo e pensar
no que poderia ter sido o ABC se tivesse continuado com seu sophistipop no seu pique
criativo/comercial, ao invés de ter se autossabotado com a crueza de Beauty Stab
(1983).
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