Tristonho com a baixaria política instalada no país, nosso historiador-cronista relembra canções que tem a ver com o momento.
Canção e memória da dor de ser brasileiro hoje.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Trabalhar com oralidade tem suas vantagens e riscos.
As benesses correm por conta de surpresas que ganhamos quando se entende a
fertilidade da palavra trocada com outros. Quanta beleza pode existir numa
conversa amigável, solta, dessas que estão cada vez mais raras. Os riscos, por
sua vez, procedem da redução da fala a mero ato informativo, mecânico, sem
tempo de se alongar. Mesmo na solitude, acabamos por estabelecer contatos com
repertórios que nos acometem, com significados, muitas vezes inexplicados.
Volta e meia canções rondam nossas cabeças e, sem perceber, deixamo-nos
envolver por sons imprevistos. É ilusão, porém supor que esses arroubos sejam
inocentes, são resquícios de memória latente, que não se deixa morrer. É como
se existisse dentro de nós um inquieto apelo libertário “que sofre, mas não morre”.
Ainda ontem, sem mais nem menos, me veio à cabeça
uma canção que pensava esquecida. Foi como num assalto que me vi repetindo a
letra de Cartomante, de Ivan Lins,
que na voz de Elis Regina declinava “nos dias de hoje é bom que se proteja/ Ofereça a face pra
quem quer que seja/ Nos dias de hoje esteja tranquilo” é verdade que
aqueles eram dias da brotada ditadura civil/militar, mas o significado embutido
na canção se atualiza no refrão “Cai o
rei de Espadas/ Cai o rei de Ouros/ Cai o rei de Paus/ Cai não fica nada”.
A associação com o noticiário recente é imediata. Depois do impedimento da
Presidenta eleita, muitos supunham que a Operação Lava-Jato poderia morrer.
Quis a justiça (dos homens e a divina) que as coisas continuassem e aí estão as
providenciais promessas de novas quedas. Bastou enunciar esse mote para que
desse corda a outras lembranças de vínculos entre música e política. Na virada
dos anos de 1960, ante o recrudescimento da quartelada militar iniciada em
1964, ainda reinava a ilusão do transitório e se pensava no retorno dos
militares ao quartel. E em coro jovens, com Vandré, entoavam Pra não dizer
que não falei de flores. Vale lembrar que a canção se abre exatamente com o
vigor do canto “Caminhando e cantando e
seguindo a canção”. Na prática, a canção não se realizou e, pelo contrário,
foi um dos motivos do AI5 que, no calorento dezembro de 1968, referendou o
fechamento do Congresso promovendo devassas. O átomo da inquietação, contudo,
se gestava e frente ao macabro enredo que se seguiu, assistimos muitos jovens
se darem à guerrilha. O terrorismo de estado se implantou e foi preciso a morte
do jornalista Herzog para emblemar a reação. Foi longa noite de 21 anos que por
fim permitiu raios de luz. Mas o preço foi alto.
Dia desses, pensando nisso, outra canção me
atacou, me surpreendi cantarolando uma letra que me acompanhou como professor,
trata-se da Geração Coca-Cola, da banda Legião Urbana. Confesso que
sempre que pensava em me alterar em sala de aula ouvia “Quando nascemos fomos programados/ A receber o que vocês nos empurraram/
Com os enlatados dos USA, de 9 às 6/ Desde pequenos nós comemos lixo comercial
e industrial/ Mas agora chegou nossa vez/ Vamos cuspir de volta o lixo em cima
de vocês”. E como martelada ficava o refrão “Somos os filhos da revolução/ Somos burgueses sem religião/ Somos o
futuro da nação/ Geração Coca-Cola”. Talvez a herança mais triste dessa
saga se expresse agora e se deixa transparecer na geração medíocre de políticos
que temos. Logicamente, o processo que se seguiu ia cumprindo o script também
dado por outra canção oportuna, digna de ser trilha sonora dos anos de 1990, o Teatro
dos Vampiros, igualmente do Legião Urbana. Em meio da letra ouve-se “Voltamos a viver como há
dez anos atrás... E a cada hora que passa/ Envelhecemos dez semanas”.
Incrível e doída memória. E assim caminhamos
cantando e seguindo a canção. Ainda que a impertinência das letras nos
atormente, resta pensar que, apesar de tudo, há uma beleza inconformada na
memória nacional. Que caiam os reis de paus, de espadas, de ouros e de copas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário