quinta-feira, 23 de junho de 2016

TELONA QUENTE 164

Roberto Rillo Bíscaro

Não é incomum filmes que tratam sobre alguma deficiência resvalarem pro sentimentalismo fácil ou pra história de superação pretensamente inspiradora. Assim, pessoas com deficiência categorizam-se como vítimas ou como “especiais”. Ainda que possuam sua simpatia sacarínica, enche não haver muito desafio e astúcia nesse quadrante. Blind (2014), estreia diretorial do roteirista Eskil Vogt, tem título em inglês, mas procede da Noruega e traz protagonista não-vidente mostrada em seus desafios cotidianos, mas também uma história formalmente desafiadora.
Ingrid perdeu a visão recentemente e passa os dias reclusa no escuro em seu apartamento em Oslo. Seu marido incentiva-a a sair, mas a loira prefere escrever e dar muita asa à imaginação e à paranoia. Através de seu ponto de vista, somos apresentados a Einar, ávido consumidor de pornografia internética, e a Elin, sueca divorciada vivendo em Oslo com o filho, que depois vira filha. Não se trata de cirurgia de troca de sexo, mas da imaginação de Ingrid. Um dos fascínios de Blind é não sabermos até que ponto as coisas são verdade ou frutos da cabeça cada vez mais ciumenta e perturbada da personagem, que pode estar escrevendo a vida dessas pessoas. Há horas em que o próprio maridão é jogado pra narrativa do que parece ficcional, mas nem sempre dá pra perceber se é isso mesmo.
Minucioso ao mostrar como uma cega tateia pela casa e deixa restos de comida ao limpar o chão, Blind também aproveita que parte da história se passa na cabeça de Ingrid pra se sair com soluções cênicas sensacionais. Dois caras conversando num bar e de repente quando a câmera focaliza um deles, a paisagem da janela está se movendo ao passo que a do outro não até que as 2 estão e entendemos que é um modo de nos mostrar cubisticamente que o encontro acabou e estavam indo pra casa (ou não).
Nórdico, experimental e enfocando gente solitária, o leitor certamente pode esperar um filme escuro, impenetrável, macambúzio. Engana-se. Blind é recheado de humor (escandinavo, cuidado, não espere musiquinha besta de fundo pra você rir), sexo e cinematografia clara, clean even. O elenco inteiro está ótimo, mas o destaque tem que ir pra Ellen Dorritt Petersen, que compôs uma Ingrid impecável em suas expressões, gestos e olhar perdido. Fãs de Nordic Noir reconhecerão Vera Vitali, a Sara Svenhagen das 2 temporadas de Arne Dahl.
Pra ver mais de uma vez pra perceber os detalhes. 

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