UM RÉQUIEM PARA OS MORTOS EM
NICE...
José Carlos
Sebe Bom Meihy
Escrevo amargurado, triste, ainda
sob o impacto dos recentes acontecimentos de Nice, linda cidade balneária a sudeste da França, banhada pelo Mediterrâneo. Residência de milionários, donos de mansões suntuosas, a até então pacata
mais pareceria um vilarejo, um cromo, cartão postal convidativo ao turismo
tranquilo à gouche do alarido das
grandes metrópoles europeias. O alarmante número de 84 mortos e mais de 100
feridos, abatidos por um caminhão acelerado, em velocidade progressiva, abriu
uma ferida feia na reputação regional.
Era para ser festa, e o
famoso Boulevard des Anglais, ladeado
de palmeiras exuberantes, seria palco da manifestação cívica mais prestigiosa
da França, o 14 de julho, dia em que se comemora a Queda da Bastilha em 1789,
marco da Revolução Francesa. Muito mais feia, porém, é imagem redesenhada pela
Polícia Francesa que não conseguiu previr o estranho ataque. É verdade que
seria difícil prever qualquer atitude transloucada, mas a coleção de atentados
com sucesso mostra que algumas medidas deveriam ser tomadas, em particular no
que toca à vigilância de espaços em dias de significação nacional e patriótica.
Um dos pontos de estrangulamento das explicações corre por conta dos dois
quilômetros percorridos pelo caminhão alugado, com prazo vencido, e que
conseguiu passar por duas barreiras de soldados. Como isso se deu?
Sabe-se que o esforço
internacional tem barrado muitos atos que se armam sob a chancela do autodenominado
Estado Islâmico (EI), em particular na Europa Ocidental. O alcance positivo
dessas medidas, no entanto, tem motivado reações diversas e de impacto nos
segmentos mais exaltados. Com investidas isoladas, autônomas, e sem o suposto
preparo, os ataques trocam as elaborações complexas por medidas individuais,
não menos loucas, aliás. Com isso, garante-se a multiplicação de atos isolados,
de ativistas solitários, donos dos próprios planos. O pior é que mesmo se
assumindo o fracionamento desses jihadistas, os resultados não perdem o efeito
avassalador, numérico e cada vez mais atemorizante. Com certeza, eles vão se
multiplicar.
Há algo mais a dizer sobre
tal evento: pode ser uma atitude terrorista sim, mas também cabe pensar em
impulso individual, desesperado. O jovem de 31 anos, Mohamed Lahouaiel Bouhiel,
aparentemente não tem ligação com membros do EI. Sequer a responsabilidade
ainda foi assumida. Em processo de divórcio, com três filhos e muitas dívidas,
o atacante, segundo vizinhos e conhecidos, era deprimido e dono de atos
esporádicos de violência, com passagens pela polícia. Mas, tudo isso parece
pouco ante a ligação mecânica que se faz com atos terroristas. Contudo, chama-se
a atenção para outro ângulo do problema: a ligação imediata entre situações
como essa e o mapa do terrorismo internacional. A mera possibilidade desse ser
um ato isolado convida a pensar no pânico instalado no mundo. Não se deve
também desprezar o fato de existirem manifestações recortadas, de grupos
localizados. É erro dramático simplificar tudo e propor que vivemos uma guerra
religiosa, como se fora um jogo de cristãos X muçulmanos. Cabe lembrar que o
islamismo é pacifista e não é justo colocar no mesmo nível grupos que tem, no
mesmo credo, opções tão diversas.
Conheço muitos mulçumanos que reprovam com veemência os atos terroristas.
Mas o grito de dor é
inexorável e o medo justificável. Ele é real, e, frente a contabilidade
dramática dos mortos temos que perguntar: o que aprendemos com isso tudo? O que
se pode fazer, além do medo crescente? E as respostas se fazem de forma mansa,
começando pelo apelo da não simplificação dos acontecimentos. O julgamento
apressado pode acirrar um dos fenômenos mais crescentes da nossa realidade: o
ódio defensivo. Façamos um réquiem para os mortos e em nome deles, na penúria
dos que ficam, tentemos um posicionamento, crítico sim, atuante também, mas
sereno e vigilantemente inteligente.
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