Numa demonstração de contemporânea multidisciplinaridade, nosso historiador-cronista une o poeta Gregório de Matos, novela global, Maria Bethânia e mitologia grega. Saiba como lendo a crônica de hoje:
MORTAL
LOUCURA: POEMA, MÚSICA, NOVELA E
CRÍTICA.
José Carlos Sebe Bom Meihy
O filósofo e ensaísta
Marcos Tavares d’Amaral escreveu inspirado artigo, publicado recentemente n’O
Globo. O tema é comentário do poema “Mortal Loucura”, escrito por Gregório de
Matos, na turbulenta Bahia, no século XVII. O poeta abrasileirado, também
conhecido como “Boca do Inferno”, além de severo crítico da igreja e dos
costumes, apologista que foi dos poemas eróticos mais expressivos da língua
portuguesa, não poupou a sociedade em geral. E tudo feito com engenho e arte,
de tal forma que a evocação da mitologia grega reverberou como eco ferino,
oportuno, coerente com o dizer barroco. Verseja o poema “Na oração, que
desaterra… a terra/ Quer Deus que a quem está o cuidado… dado/ Pregue que a
vida é emprestado… estado/ Mistérios mil que desenterra… enterra/ Quem não
cuida de si, que é terra… erra/ Que o alto Rei, por afamado… amado/ É quem lhe
assiste ao desvelado… lado/ Da morte ao ar não desaferra… aferra/ Quem do mundo
a mortal loucura… cura/ A vontade de Deus sagrada… agrada/ Firmar-lhe a vida em
atadura… dura/ O voz zelosa, que dobrada… brada/ Já sei que a flor da
formosura… usura/ será no fim dessa jornada… nada”. A par da sofisticação argumentativa
que a um tempo demonstra refinado domínio do vernáculo e ácida picardia, o
verso cresce provocando ironia e chasco. E quanta graça!...
Sempre admirado, o soneto
figura em antologias e libelos exaltativos do melhor uso da norma culta. De tal
quilate é o fulgor de “Mortal Loucura” que José Miguel Wisnick, músico de mão
cheia e crítico literário dos mais expressivos da nossa cultura, musicou de
forma plena, transformando o soneto em canção. Até parece que os dois estavam
em um só quando o som musical se juntou às ferinas palavras. Tudo fica exposto
e se presta a ser comprovado agora na novela “Velho Chico” do surpreendente
Benedito Ruy Barbosa. Supostamente transcorrida na Bahia, com a nordestina voz
de Maria Bethânia preenchendo silêncios, como se fosse lamúria antiga, solta o
poema/canto que integrou ao enredo do folhetim. E como eco de mensagem que
precisa ser dita, o velho soneto virou canção que virou tema de novela, onde o
eco do amor imorredouro se repete em corações, de uma geração a outra. Ecos de
ecos!...
Em se falando de ecos, por ironia, foi o italiano
ensaísta Umberto Eco quem definiu que toda obra colocada à público “é aberta”,
isto é, sugere interpretações que escapam do limite intencional dos autores. A
recepção pública, portanto, passou a ressignificar enunciados que, no caso,
evocam a lenda mitológica grega, da ninfa Eco, amaldiçoada por Hera, mulher de
Zeus. Segundo aquela tradição, a ninfa de inigualável voz e amante da natureza,
tentava com demais ninfas, entreter o maior dos deuses, Zeus, que fugia da
vigilância de Hera. Certa feita, a desconfiada esposa resolveu surpreender o esposo
em suas andanças escusas. Para proteger as colegas, Eco que se apartara do
grupo, buscou espairecer a enfurecida deusa. Logo descoberta, como castigo Hera
amaldiçoou Eco que nunca mais poderia começar nenhuma conversa, apenas repetir
as últimas palavras. Destino cruel o da ninfa desgraçada que então passou a
pairar mundo afora sempre repetindo palavras de fim.
Todo enredo que amarra poema, canção, lenda
novela fica ainda mais excitante quando pensamos que tudo pode acontecer sem
que muitos tomem consciência da beleza da memória requalificada no presente. Avesso
disso, muitas pessoas podem apenas gostar de resultados sem necessariamente se
deter nos enredos que nutrem visões preocupadas com a história. Nesses casos,
como ecos, o aplauso desarmado de expectadores apenas serve para ecoar enredos
que entoaram em outras plagas. Aliás, o próprio Gregório de Matos previa isso
ao dizer “O voz zelosa, que dobrada… brada/ Já sei que a flor
da formosura… usura/ será no fim dessa jornada… nada”. Nada!...
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