Roberto Rillo Bíscaro
Não posso ver série baseada em/inspirada por Charles
Dickens, que dá vontade de ler o bisavô das telenovelas. Durante a morna
Dickensian, comichava por folhetim e assim que pude, peguei David Copperfield,
que já lera em forma reduzida – acho que foi meu primeiro livro em inglês – e
em português, mas jamais em toda sua volumosa glória original.
Publicado em série entre 1849-50, David Copperfield
autonarra sua trajetória. Menino de classe-média, vê-se jogado no mundo do
trabalho infantil, quando sua mãe morre e seu malvado padrasto o põe pra
labutar limpando e rotulando garrafas. O romance conta como Copperfield superou
isso e tornou-se escritor de sucesso. A biografia de Dickens apresenta
elementos coincidentes com David Copperfield, que o inglês considerava “filho
predileto”. Dickens trabalhou numa fábrica, quando seu pai foi preso por
débitos e toda a família foi morar na cadeia (como em Little Dorritt), exceto o
pequeno Charles, que, aos 12 anos, teve que viver só e correu o risco de ver
seus sonhos de uma vida de mãos sem calos em perigo. Quando o pai saldou as
dívidas e saiu do xilindró, a casca de ferida da mãe não tirou Dickens da
fábrica, daí há quem diga que os conflitos no romance são espelhos dessa
situação. Muito simplista ler literatura como mero reflexo especular de
biografias. Óbvio que há algo da vida de Dickens em David Copperfield, mas os
conflitos existentes não estão lá porque o autor os teve com seus pais, mas
porque conflito é a primeira condição formal pra que houvesse um romance no século
XIX.
Tido como romance de formação, aquele onde a
personalidade dum protagonista amadurece, essa leitura me chamou atenção pro
modo como Dickens disfarça bem a quase não mudança de Copperfield. Claro que a
disciplinarização do coração e a perda da ingenuidade acontecem. Ele abandona
suas paixões intempestivas e crença nas aparências; o casamento com Dora (ai
que mocinha irritante!) e a amizade com Steerforth estão lá pra isso. Mas,
David realmente não tem que alterar seu jeito otimista em nada que seja realmente
essencial: todo mundo que se lhe interpõe no caminho, morre! É assim, a suposta
maturidade copperfieldiana repousa numa série de cadáveres e personagens que se
ferram pra que ele possa ser bom. Veja se Emily não funciona pra isso e depois
me conte em comentário. Pros materialistas culturais em busca de tema pra
TCC/mestrado, talvez fosse a ideia de ver como esse dado formal replica a fase
do capitalismo na qual se insere o romance. Me chamem pra banca!
É mais ou menos assim: ele até se dá conta de que o
casamento com a paspalha Dora traria infelicidade, porque ela não possui a
racionalidade que ele quer. Na verdade, ele não consegue que ela seja como ele
quer, coisa a que Agnes caninamente está disposta (os opostos se atraem é
bobageira, a sociedade vitoriana amava a sóbria simetria). Ao invés de David
ter de lidar com isso, Dora morre nem sabemos de quê e nem sentimos muito,
porque ela é construída irritantemente pra isso mesmo. Assim, até eu amadureço:
o mundo ficando como quero, pra minha conveniência, ai que sonho!
Esse é apenas um estratagema usado pra maquiar David
Copperfield, a personagem. Outro é a deformação de várias personagens através do
humor, tornando-as caricatas. Isso funciona pra divertir, sem dúvida (mas não
muito hoje em dia, será? Aquela mulher espantando asnos é uma asneira!), mas
também garante superioridade de partida a Copperfield, cujos defeitos e
imaturidade aparecem minimizados perante a loucura de Mr. Dick, a rudeza gentil
e de inglês desviado da norma culta de Mr. Peggotty ou Ham; a vileza
cicatrizada de Rosa Dartle. Como narrador, David pode se “limpar” de vícios de
linguagem que tornam muitas das personagens caricatas ou estranhas; passa a ser
potencialmente o centro de estabilidade e normalidade da narrativa, que é o que
acontece, quando ela perde a graça (note como os capítulos finais dos romances
da época são curtinhos; é porque o bom da história já tinha passado – cessou
conflito, acabou a matéria do romance).
Morro de sono com o papo de ausência de profundidade
psicológica das personagens dickensianas, tipo, Mr. Micawber a gente conhece
assim que abre a boca e jamais muda. E quem disse que é isso o que importa em
biso Dickens?
Quando escreveu David Copperfield, por exemplo, pela
primeira vez na História, havia um país onde a população urbana era maior que a
rural, com todas as implicações de produção, vivenda, deslocamentos e
relacionamentos que isso significava em níveis práticos e simbólicos. Numa
Londres inchada e insalubre, Dickens contrastava o mundo do capitalismo
hobbesiano, onde um queria comer o outro – não eram poucos os que defendiam o
livre mercado total – com uma possibilidade de vida melhor, no caso na classe
média, longe da fábrica. Pros meritocratas de plantão, a pergunta: Copperfield
teria chance de se tornar escritor de sucesso caso tivesse nascido na classe
operária, sem ligação alguma com a média? Veja o que acontece a Ham e pra
benefício de quem...
Certo que os livros de Dickens sempre tinham gordurinhas,
porque escrevia pra agradar o leitor de sua época; também correto que David
Copperfield perde algum interesse quando os problemas de David passam de
subsistir pra viver bem. Porém a descrição da violência infantil revolta e dá
vontade de trazer David pra casa e a jornada Londres-Dover, faminta e cheia de
bolhas no pé, angustia.
Defeitos e mistificações existem, mas ainda dá prazer ler
este mestre britânico do século XIX. Pra quem é taxado de “raso” por tantos,
Dickens continua mandando bem.
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