sexta-feira, 22 de julho de 2016

PAPIRO VIRTUAL 108

Roberto Rillo Bíscaro

Não posso ver série baseada em/inspirada por Charles Dickens, que dá vontade de ler o bisavô das telenovelas. Durante a morna Dickensian, comichava por folhetim e assim que pude, peguei David Copperfield, que já lera em forma reduzida – acho que foi meu primeiro livro em inglês – e em português, mas jamais em toda sua volumosa glória original.
Publicado em série entre 1849-50, David Copperfield autonarra sua trajetória. Menino de classe-média, vê-se jogado no mundo do trabalho infantil, quando sua mãe morre e seu malvado padrasto o põe pra labutar limpando e rotulando garrafas. O romance conta como Copperfield superou isso e tornou-se escritor de sucesso. A biografia de Dickens apresenta elementos coincidentes com David Copperfield, que o inglês considerava “filho predileto”. Dickens trabalhou numa fábrica, quando seu pai foi preso por débitos e toda a família foi morar na cadeia (como em Little Dorritt), exceto o pequeno Charles, que, aos 12 anos, teve que viver só e correu o risco de ver seus sonhos de uma vida de mãos sem calos em perigo. Quando o pai saldou as dívidas e saiu do xilindró, a casca de ferida da mãe não tirou Dickens da fábrica, daí há quem diga que os conflitos no romance são espelhos dessa situação. Muito simplista ler literatura como mero reflexo especular de biografias. Óbvio que há algo da vida de Dickens em David Copperfield, mas os conflitos existentes não estão lá porque o autor os teve com seus pais, mas porque conflito é a primeira condição formal pra que houvesse um romance no século XIX.
Tido como romance de formação, aquele onde a personalidade dum protagonista amadurece, essa leitura me chamou atenção pro modo como Dickens disfarça bem a quase não mudança de Copperfield. Claro que a disciplinarização do coração e a perda da ingenuidade acontecem. Ele abandona suas paixões intempestivas e crença nas aparências; o casamento com Dora (ai que mocinha irritante!) e a amizade com Steerforth estão lá pra isso. Mas, David realmente não tem que alterar seu jeito otimista em nada que seja realmente essencial: todo mundo que se lhe interpõe no caminho, morre! É assim, a suposta maturidade copperfieldiana repousa numa série de cadáveres e personagens que se ferram pra que ele possa ser bom. Veja se Emily não funciona pra isso e depois me conte em comentário. Pros materialistas culturais em busca de tema pra TCC/mestrado, talvez fosse a ideia de ver como esse dado formal replica a fase do capitalismo na qual se insere o romance. Me chamem pra banca!
É mais ou menos assim: ele até se dá conta de que o casamento com a paspalha Dora traria infelicidade, porque ela não possui a racionalidade que ele quer. Na verdade, ele não consegue que ela seja como ele quer, coisa a que Agnes caninamente está disposta (os opostos se atraem é bobageira, a sociedade vitoriana amava a sóbria simetria). Ao invés de David ter de lidar com isso, Dora morre nem sabemos de quê e nem sentimos muito, porque ela é construída irritantemente pra isso mesmo. Assim, até eu amadureço: o mundo ficando como quero, pra minha conveniência, ai que sonho!
Esse é apenas um estratagema usado pra maquiar David Copperfield, a personagem. Outro é a deformação de várias personagens através do humor, tornando-as caricatas. Isso funciona pra divertir, sem dúvida (mas não muito hoje em dia, será? Aquela mulher espantando asnos é uma asneira!), mas também garante superioridade de partida a Copperfield, cujos defeitos e imaturidade aparecem minimizados perante a loucura de Mr. Dick, a rudeza gentil e de inglês desviado da norma culta de Mr. Peggotty ou Ham; a vileza cicatrizada de Rosa Dartle. Como narrador, David pode se “limpar” de vícios de linguagem que tornam muitas das personagens caricatas ou estranhas; passa a ser potencialmente o centro de estabilidade e normalidade da narrativa, que é o que acontece, quando ela perde a graça (note como os capítulos finais dos romances da época são curtinhos; é porque o bom da história já tinha passado – cessou conflito, acabou a matéria do romance).
Morro de sono com o papo de ausência de profundidade psicológica das personagens dickensianas, tipo, Mr. Micawber a gente conhece assim que abre a boca e jamais muda. E quem disse que é isso o que importa em biso Dickens?
Quando escreveu David Copperfield, por exemplo, pela primeira vez na História, havia um país onde a população urbana era maior que a rural, com todas as implicações de produção, vivenda, deslocamentos e relacionamentos que isso significava em níveis práticos e simbólicos. Numa Londres inchada e insalubre, Dickens contrastava o mundo do capitalismo hobbesiano, onde um queria comer o outro – não eram poucos os que defendiam o livre mercado total – com uma possibilidade de vida melhor, no caso na classe média, longe da fábrica. Pros meritocratas de plantão, a pergunta: Copperfield teria chance de se tornar escritor de sucesso caso tivesse nascido na classe operária, sem ligação alguma com a média? Veja o que acontece a Ham e pra benefício de quem...
Certo que os livros de Dickens sempre tinham gordurinhas, porque escrevia pra agradar o leitor de sua época; também correto que David Copperfield perde algum interesse quando os problemas de David passam de subsistir pra viver bem. Porém a descrição da violência infantil revolta e dá vontade de trazer David pra casa e a jornada Londres-Dover, faminta e cheia de bolhas no pé, angustia.

Defeitos e mistificações existem, mas ainda dá prazer ler este mestre britânico do século XIX. Pra quem é taxado de “raso” por tantos, Dickens continua mandando bem. 

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