domingo, 24 de julho de 2016

TRANCADOS

A Comovente História da Família de Albinos que Vive Trancada em Porto Rico
Alejandro Millán Valencia
(Tradução: Roberto Rillo Bíscaro)
Para a família Nieves Nieves, o exterior, a ideia de lado de fora é como um mar de lava pelo qual poucas vezes se aventuram.
Albinismo
O brilho do sol tem o mesmo efeito de um lança-chamas sobre suas peles e não conseguem ver mais que sombras a 20 metros de distância. Todos têm a Síndrome de Hermansky-Pudlak (HPS), estranho tipo de albinismo que produz despigmentação em vários órgãos do corpo e nesta região de Porto Rico apresenta-se com prevalência maior que em qualquer parte do planeta. Devido a isso, Miguel, o pai; Rita, a mãe e Alejandro, Mayra e Reinaldo, os filhos - todos albinos - são como prisioneiros em sua própria casa.
Seu refúgio de ermitões - no município de Aguadilla, a 90 km a oeste da capital, San Juan de Puerto Rico - é um sobrado verde adornada com poucas coisas: um quadro enorme do Sagrado Coração de Jesus e retratos familiares. Nas camas não há lençóis e na sala, apenas um sofá onde ninguém senta. Essa austeridade tem um sentido: a ausência de objetos serve para que a brisa marinha passe sem problemas desde o quintal plantado com plátanos, até o terraço rodeado de palmeiras.
É sentado ali, sem camisa, escutando a salsa de Maelo Rivera no rádio, coberto por pelos prateados, que contrastam com as manchas escuras que cobrem a totalidade de suas mãos e pescoço, que Miguel Nieves Vázquez aproveita o frescor da aragem.
“Faz 30 anos que não vou à praia”, confidenciou-me. “Não me interessa mais”. O Oceano Atlântico está a apenas 1.500 metros de sua casa. Algumas vezes, quando há suficiente silêncio, escutam-se as ondas golpeando contra as rochas.
Familia Vazquez
Legalmente Cegos
O ser humano pisca cerca de dez vezes por minuto. É um movimento rápido, quase imperceptível, que nos deixa às escuras por 400 milésimas de segundo. No caso de Reinaldo, caçula de Miguel y Rita, acontece o contrário: seu mundo se mantém na penumbra quase o tempo todo e suas pálpebras se abrem poucas vezes durante um minuto, para poder ver.
Essa limitação é apenas o princípio de seu isolamento. Além de machucar sua pele rosada, o reflexo do sol não encontra nenhum filtro quando atravessa o cristal de seus olhos. A íris é transparente como vidro e a luz passa diretamente até a retina. É como se visse a claridade de um espelho diretamente nos olhos, cada vez que os abre.
O oftalmologista Natalio Izquierdo Encarnación é um respeitado médico porto-riquenho – e um dos homens mais altos que vi. Sentados em seu consultório ao sul de San Juan, com um modelo de olho feito de acrílico, ele explica que o processo de despigmentação dos pacientes com HPS não só se apresenta na pele e cabelo, como vemos nas fotos em revistas científicas, mas também na íris e na retina, por isso, os níveis de visão em pessoas como Reinaldo e sua família são muito deficitários. “A maioria são considerados legalmente cegos”, afirma.
Um carro sem motorista
Reinaldo é legalmente cego e isso tem prós e contras. A favor: recebe auxílios do governo, como por exemplo, para comprar um carro. Contra: não pode dirigir.
Em um país onde o transporte público está longe de ser exemplar - além de estar ameaçado seriamente pela crise econômica que a ilha atravessa – o automóvel é quase a única maneira de locomover-se. “Sempre preciso que alguém dirija”, conta Reinaldo, proprietário de um Toyota Yaris, modelo 2012, comprado com o auxílio do governo federal. “Sempre” é toda sexta, quando tem que buscar a filha Génesis no município de Arecibo –a 52 km de Aguadilla - porque não pode viajar até San Juan, onde a menina vive desde que Reinaldo e sua mãe se separaram. Sua ex-mulher viaja de San Juan à Arecibo, onde termina a rodovia, e entrega a garota ao pai. No domingo, a história se repete, ao contrário. “Como poderia pagar um chofer para ir e voltar a San Juan, duas vezes por semana, totalizando quatro horas?” reclama Reinaldo. “Amigos podem te fazer um favor, uma, duas vezes, mas toda semana tenho que juntar uns trocados e dar para alguém ir buscá-la em Arecibo".
O resto da semana, o carro descansa na garagem da casa. "A última vez que fui a San Juan faz sete anos, para resolver um problema de meu irmão Alejandro", relata, enquanto Génesis, de 3 anos e tão morena quanto Reinaldo é translúcido, o abraça pelo pescoço, seu cabelo azeviche sobre a pele rosada de seu pai.
Albinismo
Efeito fundador mutante
Miguel Nieves Vázquez casou-se com sua prima Rita Nieves Vázquez há 40 anos, porque viviam na mesma rua e porque  ela "era como eu, albina". Foram morar em Nova York, mas com os primeiros ventos gelados sobre o rio Hudson, a pele de Rita começou a fragmentar-se e a desprender-se de seus braços. Tiveram que voltar a Aguadilla, onde Rita possuía um pedaço de terra.
Enquanto Miguel sacrificava-se sob o sol do Caribe trabalhando como pedreiro, ela escolheu a cozinha como refúgio: desde que se levanta até ir dormir, por volta das oito da noite, Rita perambula entre caçarolas e colheres de pau, com una artrite que lhe corrói as mãos, os pés escamosos pelo inchaço, os olhos fechados pelo albinismo. Ela é a encarregada de decidir como utilizar as favas descascadas com as netas, o que fazer com o cacho de banana que acaba de cair no quintal e a que horas preparar as ervilhas.

Albinos em Porto Rico
Uma das razões pelas quais Porto Rico tem a prevalência mais alta de albinismo no mundo - e em especial de HPS - é a endogamia, fruto de sua condição insular. Primos segundos que se casam com primos segundos. Primos-irmãos que se apaixonam por primos-irmãos.
"Somos uma ilha e famílias da Holanda e Espanha trouxeram o gene há cinco séculos. Por não ter muito contato com o mundo exterior, ele se transformou no que hoje estamos vendo; em alguns casos no que se conhece como HPS", explica Enid Rivera, médica especializada em hematologia e oncologia da Universidade de Michigan
"Esse fenômeno é conhecido como ‘o efeito dos fundadores", completa Rivera, que é assessora de governo no tema albinismo.
Um em cada 2.000 habitantes da ilha é portador do gene do albinismo. Além da pele clara e da cegueira, a HPS traz consigo duas características inevitáveis: fibrose pulmonar e hemorragias severas devido à escassez de plaquetas no sangue. “Há registros de mulheres com HPS, que morreram por excessiva perda de sangue durante o ciclo menstrual”, conta Rivera.
Óbitos também podem ocorrer no parto. “Reinaldo nasceu quando eu estava de sete meses e quase morri”, assinala Rita, que se lembra de tudo e corrige os demais, quando alteram algum fato do relato dos Nieves Nieves. O óbito quase se deu devido ao sangramento irreprimível. Assim, a morte é uma emboscada constante: sol, frio, partos, pulmões. Há 30 anos os Nieves se escondem da morte. Por isso, as únicas aventuras da família são as idas de Miguel ao jardim para cuidar das bananeiras e os 500 metros que Reinaldo percorre de bicicleta até seu trabalho como repositor em um supermercado.
Mayra, a única filha - e que vive em una casa que Miguel construiu no fundo do quintal -, só vai a uma clínica em um povoado vizinho para levar sua filha que está com bronquite. Por escolha, Rita não sai nunca. “Para que sair, para que correr perigo?”, indaga Miguel, esbaforido após uma saída ao quintal.
Conteo
Pena de morte
O governo de Porto Rico não sabe o número exato de albinos na ilha. Quando se pergunta em qualquer órgão público, a resposta negativa é sempre a mesma.

Sabe-se apenas que ano passado nasceram 74 bebês. A Dra. Rivera se atreve a dar uma cifra aproximada baseada em estudos: uns 800.
Estudando-se os atestados de óbito, a única certeza que os especialistas têm é que os albinos da ilha nunca morrem de velhice.
Na casa dos Nieves Nieves a morte ronda também no peito de cada membro. “Nos últimos meses, tem começado a me faltar ar quando estou no trabalho", explica Reinaldo.
-E por que não vai ao médico?, pergunto.
Ele sorri.
“Meu pai não conseguiu pagar a previdência social na época em que trabalhava, devido a suas limitações. Então, ele não recebe pensão e tenho que ajuda-lo como posso”, lamenta-se Reinaldo. O que ganha, somado aos auxílios do governo, ele usa para sustentar a filha e seus pais, que recebem apenas o equivalente a US$128 por mês em tíquetes-alimentação.
Insisto: "Por que não procura um médico?"
Não me responde, porque talvez tema a resposta.
Ivette Vázquez, presidenta do capítulo porto-riquenho da Fundação Hermansky-Pudlak Syndrome e que trabalha ativamente com os albinos, conta que se sabe que Reinaldo tem indícios de fibrose pulmonar.
Quem me esclarece a história é Yeidyly Vergner, respeitada epidemiologista da Universidade de Porto Rico e que padece de HPS tipo 3 (existem cinco tipos de HPS e pelo menos 14 tipos de albinismo, dos quais sete se encontram em Porto Rico.): “100% das pessoas que sofrem de HPS tipo 1 (como a família Nieves Nieves) desenvolvem algum tipo de fibrose pulmonar".
A fibrose ocorre porque o corpo do albino produz uma substância serosa que se acumula nos pulmões e, depois de um tempo, tira-lhes a capacidade de expansão. Em Porto Rico isso pode ser uma sentença de morte: a única cura possível é um transplante de pulmão e não há nenhum local onde isso seja feito.
Reinaldo talvez saiba disso, ainda que ninguém tenha lhe confirmado. "Acho que se até hoje não me aconteceu nada, é capaz que no dia que vá a essa consulta médica, volte pra casa numa cadeira de rodas", desabafa.
Familia
Na escola confusa
Quando volta do hospital, Mayra fala sobre sua época escolar. "Nos colocavam apelidos, nos agrediam com o que tinham a mão, porque não nos aceitavam. Mas, sempre havia alguém que nos defendia".
É a temporada de chuva: os germes brotados da terra úmida infestaram os pulmões de sua filha mais velha, causando-lhe bronquite severa. Ela só dispõe de alguns minutos para conversar, porque tem que voltar logo para o centro médico de Aguadilla.
“Conforme crescia, tudo mudou, foi melhorando. Já não é como antes, mas ainda tem gente que depois de ficar do seu lado, porque não há outro remédio, se afastam comentando".
Mayra teve que abandonar os estudos mas, ainda que não me revele o motivo, suspeito que a história de muitos albinos com HPS em Porto Rico tenha se repetido: escolas com professores que confundiram cegueira com deficiência cognitiva. Apesar de atualmente existir uma política de inclusão nas escolas, os albinos que não conseguiram superar os obstáculos no passado, hoje lamentam a ajuda que não receberam. Mayra não sabe ler e a principal de suas angustias é não poder ajudar suas filhas nas tarefas da escola e da vida.
"As três se ajudam entre elas.” Seus olhos se enchem de lágrimas e ela segura a respiração. “São inteligentes como o pai e não como eu. Não tive educação ou apoio, mas o pouquinho que posso dar, dou”, diz e perde o fôlego, porque também tem fibrose pulmonar.
Na loja da esquina deste bairro de casas separadas por gramados imensos, encontro Ricardo Vázquez, um vizinho dos Nieves Nieves, a quem pergunto sobre eles: se acha que seus vizinhos albinos são estranhos, como eles mesmos se denominam.
"Olha, eles são um pouco tímidos, só isso. São a família mais amável da rua. Ademais de viverem aqui mais tempo do que nós”, responde com um vozeirão que sacude o local.
Um país que não pode nem perder
Em junho do ano passado, o governador de Porto Rico, Alejandro García Padilla, declarou ao The New York Times que a dívida pública da ilha, que ultrapassa 73 milhões de dólares, era "impagável" e que o "estado livre associado" dos Estados Unidos estava a ponto de ir à falência. Pouco depois, em meio à histeria da revelação, descobriu-se que havia pequeno inconveniente: segundo a constituição dos EUA, nenhum estado livre associado pode declarar-se em bancarrota. "É um país ao qual não deixam nem perder", me disse a escritora porto-riquenha Ana Teresa Toro.
Esta encruzilhada legal produziu terremoto político e social e uma crise que pôs em risco o financiamento de programas-chaves do governo nas áreas de saúde e educação. “O gasto com saúde beira os 3 milhões de dólares, o que é bastante dentro do orçamento da ilha, mas corre risco de ser reduzido severamente", explica Rivera. Parte desse dinheiro é para o atendimento personalizado dos casos de albinismo. Às promessas de sempre, agora se soma a incerteza.
"Em Porto Rico não há uma política de Estado para atender às pessoas com albinismo", sentencia Vergner. "E isso faz com que muitos de nós deixemos o país".
A tarde cai sobre o Atlântico. As primeiras nuvens escuras da temporada de chuvas pairam sobre a casa dos Nieves Nieves e as meninas da casa se preparam para dormir. Elas são diferentes. Nenhuma das quatro netas de Miguel e Rita é albina, ainda que Mayra - mãe de três – desejasse que pelo menos uma tivesse saído como ela.
Génesis aproxima-se de seu pai com os braços abertos e seus cabelos cor de azeviche contrastam com a pele rosada de Reinaldo. “Tinha quase certeza de que minha filha seria albina”, comenta o pai orgulhoso. "Foi uma surpresa ela nascer morena".
O traço genético decide muito mais do que apenas a cor do cabelo de Génesis, porém. Trata-se de salvo-conduto para uma vida bem diferente da de sua família albina.

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