A
Comovente História da Família de Albinos que Vive Trancada em Porto Rico
Alejandro Millán
Valencia
(Tradução: Roberto
Rillo Bíscaro)
Para a família Nieves Nieves, o exterior, a ideia
de lado de fora é como um mar de lava pelo qual poucas vezes se aventuram.
O brilho do sol tem o
mesmo efeito de um lança-chamas sobre suas peles e não conseguem ver mais que
sombras a 20 metros de distância. Todos têm a Síndrome de Hermansky-Pudlak
(HPS), estranho tipo de albinismo que produz despigmentação em vários órgãos do
corpo e nesta região de Porto Rico apresenta-se com prevalência maior que em
qualquer parte do planeta. Devido a isso, Miguel, o pai; Rita, a mãe e Alejandro,
Mayra e Reinaldo, os filhos - todos albinos - são como prisioneiros em sua própria
casa.
Seu refúgio de ermitões - no município de
Aguadilla, a 90 km a oeste da capital, San Juan de Puerto Rico - é um sobrado
verde adornada com poucas coisas: um quadro enorme do Sagrado Coração de Jesus
e retratos familiares. Nas camas não há lençóis e na sala, apenas um sofá onde
ninguém senta. Essa austeridade tem um sentido: a ausência de objetos serve
para que a brisa marinha passe sem problemas desde o quintal plantado com
plátanos, até o terraço rodeado de palmeiras.
É sentado ali, sem camisa, escutando a salsa de Maelo
Rivera no rádio, coberto por pelos prateados, que contrastam com as manchas
escuras que cobrem a totalidade de suas mãos e pescoço, que Miguel Nieves
Vázquez aproveita o frescor da aragem.
“Faz 30 anos que não vou à praia”, confidenciou-me.
“Não me interessa mais”. O Oceano Atlântico está a apenas 1.500 metros de sua
casa. Algumas vezes, quando há suficiente silêncio, escutam-se as ondas golpeando
contra as rochas.
Legalmente Cegos
O ser humano pisca cerca de dez vezes por minuto. É
um movimento rápido, quase imperceptível, que nos deixa às escuras por 400
milésimas de segundo. No caso de Reinaldo, caçula de Miguel y Rita, acontece o
contrário: seu mundo se mantém na penumbra quase o tempo todo e suas pálpebras
se abrem poucas vezes durante um minuto, para poder ver.
Essa limitação é apenas o princípio de seu isolamento.
Além de machucar sua pele rosada, o reflexo do sol não encontra nenhum filtro quando
atravessa o cristal de seus olhos. A íris é transparente como vidro e a luz passa
diretamente até a retina. É como se visse a claridade de um espelho diretamente
nos olhos, cada vez que os abre.
O oftalmologista Natalio Izquierdo Encarnación é um
respeitado médico porto-riquenho – e um dos homens mais altos que vi. Sentados
em seu consultório ao sul de San Juan, com um modelo de olho feito de acrílico,
ele explica que o processo de despigmentação dos pacientes com HPS não só se apresenta
na pele e cabelo, como vemos nas fotos em revistas científicas, mas também na íris
e na retina, por isso, os níveis de visão em pessoas como Reinaldo e sua família
são muito deficitários. “A maioria são considerados legalmente cegos”, afirma.
Um carro sem motorista
Reinaldo é legalmente cego e isso tem prós e
contras. A favor: recebe auxílios do governo, como por exemplo, para comprar um
carro. Contra: não pode dirigir.
Em um país onde o transporte público está longe de
ser exemplar - além de estar ameaçado seriamente pela crise econômica que a
ilha atravessa – o automóvel é quase a única maneira de locomover-se. “Sempre
preciso que alguém dirija”, conta Reinaldo, proprietário de um Toyota Yaris,
modelo 2012, comprado com o auxílio do governo federal. “Sempre” é toda sexta,
quando tem que buscar a filha Génesis no município de Arecibo –a 52 km de
Aguadilla - porque não pode viajar até San Juan, onde a menina vive desde que
Reinaldo e sua mãe se separaram. Sua ex-mulher viaja de San Juan à Arecibo,
onde termina a rodovia, e entrega a garota ao pai. No domingo, a história se
repete, ao contrário. “Como poderia pagar um chofer para ir e voltar a San
Juan, duas vezes por semana, totalizando quatro horas?” reclama Reinaldo. “Amigos podem te fazer um favor, uma, duas
vezes, mas toda semana tenho que juntar uns trocados e dar para alguém ir
buscá-la em Arecibo".
O resto da semana, o carro descansa na garagem da
casa. "A última vez que fui a San Juan faz sete
anos, para resolver um problema de meu irmão Alejandro", relata,
enquanto Génesis, de 3 anos e tão morena quanto Reinaldo é translúcido, o abraça
pelo pescoço, seu cabelo azeviche sobre a pele rosada de seu pai.
Efeito fundador
mutante
Miguel Nieves Vázquez casou-se com sua prima Rita
Nieves Vázquez há 40 anos, porque viviam na mesma rua e porque ela "era como eu, albina". Foram
morar em Nova York, mas com os primeiros ventos gelados sobre o rio Hudson, a
pele de Rita começou a fragmentar-se e a desprender-se de seus braços. Tiveram
que voltar a Aguadilla, onde Rita possuía um pedaço de terra.
Enquanto Miguel sacrificava-se sob o sol do Caribe trabalhando
como pedreiro, ela escolheu a cozinha como refúgio: desde que se levanta até ir
dormir, por volta das oito da noite, Rita perambula entre caçarolas e colheres
de pau, com una artrite que lhe corrói as mãos, os pés escamosos pelo inchaço, os
olhos fechados pelo albinismo. Ela é a encarregada de decidir como utilizar as
favas descascadas com as netas, o que fazer com o cacho de banana que acaba de
cair no quintal e a que horas preparar as ervilhas.
Albinos
em Porto Rico
Uma das razões pelas quais Porto Rico tem a
prevalência mais alta de albinismo no mundo - e em especial de HPS - é a
endogamia, fruto de sua condição insular. Primos segundos que se casam com
primos segundos. Primos-irmãos que se apaixonam por primos-irmãos.
"Somos uma ilha e famílias da Holanda e Espanha
trouxeram o gene há cinco séculos. Por não ter muito contato com o mundo
exterior, ele se transformou no que hoje estamos vendo; em alguns casos no que se
conhece como HPS", explica Enid Rivera, médica especializada em
hematologia e oncologia da Universidade de Michigan
"Esse fenômeno é conhecido como ‘o efeito
dos fundadores", completa Rivera, que é assessora de governo no
tema albinismo.
Um em cada 2.000 habitantes da ilha é portador do
gene do albinismo. Além da pele clara e da cegueira, a HPS traz consigo duas
características inevitáveis: fibrose pulmonar e hemorragias severas devido à
escassez de plaquetas no sangue. “Há registros de mulheres com HPS, que
morreram por excessiva perda de sangue durante o ciclo menstrual”, conta Rivera.
Óbitos também podem ocorrer no parto. “Reinaldo
nasceu quando eu estava de sete meses e quase morri”, assinala Rita, que se lembra
de tudo e corrige os demais, quando alteram algum fato do relato dos Nieves
Nieves. O óbito quase se deu devido ao sangramento irreprimível. Assim, a morte
é uma emboscada constante: sol, frio, partos, pulmões. Há 30 anos os Nieves se
escondem da morte. Por isso, as únicas aventuras da família são as idas de
Miguel ao jardim para cuidar das bananeiras e os 500 metros que Reinaldo
percorre de bicicleta até seu trabalho como repositor em um supermercado.
Mayra, a única filha - e que vive em una casa que
Miguel construiu no fundo do quintal -, só vai a uma clínica em um povoado
vizinho para levar sua filha que está com bronquite. Por escolha, Rita não sai
nunca. “Para que sair, para que correr perigo?”, indaga Miguel, esbaforido após
uma saída ao quintal.
Pena de morte
O governo de Porto Rico não sabe o número exato de
albinos na ilha. Quando se pergunta em qualquer órgão público, a resposta
negativa é sempre a mesma.
Sabe-se apenas que ano passado nasceram 74
bebês. A Dra. Rivera se atreve a dar uma cifra aproximada baseada em estudos:
uns 800.
Estudando-se os
atestados de óbito, a única certeza que os especialistas têm é que os albinos
da ilha nunca morrem de velhice.
Na casa dos Nieves Nieves a morte ronda também no
peito de cada membro. “Nos últimos meses, tem começado a me faltar ar quando
estou no trabalho", explica Reinaldo.
-E por que não vai ao médico?, pergunto.
Ele sorri.
“Meu pai não conseguiu pagar a previdência social
na época em que trabalhava, devido a suas limitações. Então, ele não recebe
pensão e tenho que ajuda-lo como posso”, lamenta-se Reinaldo. O que ganha, somado
aos auxílios do governo, ele usa para sustentar a filha e seus pais, que recebem
apenas o equivalente a US$128 por mês em tíquetes-alimentação.
Insisto: "Por que não procura um médico?"
Não me responde, porque talvez tema a resposta.
Ivette Vázquez, presidenta do capítulo
porto-riquenho da Fundação Hermansky-Pudlak Syndrome e que trabalha ativamente
com os albinos, conta que se sabe que Reinaldo tem indícios de fibrose
pulmonar.
Quem me esclarece a história é Yeidyly Vergner, respeitada
epidemiologista da Universidade de Porto Rico e que padece de HPS tipo 3
(existem cinco tipos de HPS e pelo menos 14 tipos de albinismo, dos quais sete
se encontram em Porto Rico.): “100% das pessoas que sofrem de HPS tipo 1 (como a
família Nieves Nieves) desenvolvem algum tipo de fibrose pulmonar".
A fibrose ocorre porque o corpo do albino produz uma
substância serosa que se acumula nos pulmões e, depois de um tempo, tira-lhes a
capacidade de expansão. Em Porto Rico isso pode ser uma sentença de morte: a
única cura possível é um transplante de pulmão e não há nenhum local onde isso
seja feito.
Reinaldo talvez saiba disso, ainda que ninguém
tenha lhe confirmado. "Acho
que se até hoje não me aconteceu nada, é capaz que no dia que vá a essa
consulta médica, volte pra casa numa cadeira de rodas", desabafa.
Na escola confusa
Quando volta do hospital, Mayra fala sobre sua
época escolar. "Nos colocavam apelidos, nos agrediam com o que tinham a
mão, porque não nos aceitavam. Mas, sempre havia alguém que nos defendia".
É a temporada de chuva: os germes brotados da terra
úmida infestaram os pulmões de sua filha mais velha, causando-lhe bronquite
severa. Ela só dispõe de alguns minutos para conversar, porque tem que voltar
logo para o centro médico de Aguadilla.
“Conforme crescia, tudo mudou, foi melhorando. Já
não é como antes, mas ainda tem gente que depois de ficar do seu lado, porque
não há outro remédio, se afastam comentando".
Mayra teve que abandonar os estudos mas, ainda que
não me revele o motivo, suspeito que a história de muitos albinos com HPS em Porto
Rico tenha se repetido: escolas com professores que confundiram cegueira com
deficiência cognitiva. Apesar de atualmente existir uma política de inclusão
nas escolas, os albinos que não conseguiram superar os obstáculos no passado,
hoje lamentam a ajuda que não receberam. Mayra não sabe ler e a principal de suas
angustias é não poder ajudar suas filhas nas tarefas da escola e da vida.
"As três se ajudam entre elas.” Seus olhos se
enchem de lágrimas e ela segura a respiração. “São inteligentes como o pai e
não como eu. Não tive educação ou apoio, mas o pouquinho que posso dar, dou”,
diz e perde o fôlego, porque também tem fibrose pulmonar.
Na loja da esquina deste bairro de casas separadas
por gramados imensos, encontro Ricardo Vázquez, um vizinho dos Nieves Nieves, a
quem pergunto sobre eles: se acha que seus vizinhos albinos são estranhos, como
eles mesmos se denominam.
"Olha, eles são um pouco tímidos, só isso. São
a família mais amável da rua. Ademais de viverem aqui mais tempo do que nós”,
responde com um vozeirão que sacude o local.
Um país que não pode
nem perder
Em junho do ano passado, o governador de Porto Rico,
Alejandro García Padilla, declarou ao The New York Times que
a dívida pública da ilha, que ultrapassa 73 milhões de dólares, era "impagável"
e que o "estado livre associado" dos Estados Unidos estava a ponto de
ir à falência. Pouco depois, em meio à histeria da revelação, descobriu-se que
havia pequeno inconveniente: segundo a constituição dos EUA, nenhum estado livre
associado pode declarar-se em bancarrota. "É um
país ao qual não deixam nem perder", me disse a escritora porto-riquenha
Ana Teresa Toro.
Esta encruzilhada legal produziu terremoto político
e social e uma crise que pôs em risco o financiamento de programas-chaves do
governo nas áreas de saúde e educação. “O gasto com saúde beira os 3 milhões de
dólares, o que é bastante dentro do orçamento da ilha, mas corre risco de ser
reduzido severamente", explica Rivera. Parte desse dinheiro é para o
atendimento personalizado dos casos de albinismo. Às promessas de sempre, agora
se soma a incerteza.
"Em Porto Rico não há uma política de Estado
para atender às pessoas com albinismo", sentencia Vergner. "E isso faz
com que muitos de nós deixemos o país".
A tarde cai sobre o Atlântico. As primeiras nuvens
escuras da temporada de chuvas pairam sobre a casa dos Nieves Nieves e as meninas
da casa se preparam para dormir. Elas são diferentes. Nenhuma das quatro netas de Miguel e
Rita é albina, ainda que Mayra - mãe de três – desejasse que pelo menos uma
tivesse saído como ela.
Génesis aproxima-se de seu pai com os braços
abertos e seus cabelos cor de azeviche contrastam com a pele rosada de
Reinaldo. “Tinha quase certeza de que minha filha seria albina”, comenta o pai
orgulhoso. "Foi uma surpresa ela nascer morena".
O traço genético decide muito mais do que apenas a
cor do cabelo de Génesis, porém. Trata-se de salvo-conduto para uma vida bem
diferente da de sua família albina.
Nenhum comentário:
Postar um comentário