A CARA DA AMÉRICA LATINA SEM ROSTO.
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Sempre medito sobre o papel da fotografia.
Confesso que gosto muito de “retrato” de gente e foi com essa intenção que me
perguntei sobre o teor da fotografia latino-americana. Tudo me veio à tona
quando li a seguinte frase: O núcleo do
processo de transformação rumo à não violência é a irrupção do rosto do outro,
rosto que pode mudar nossa violência. A frase pronunciada pelo pensador
colombiano Mario Roberto Solarte, expressa no livro “Mimesis y Noviolencia: reflexiones desde la investigación y la acción”,
entre outros, encerra um problema vital para o entendimento da existência da
identidade latino-americana: a invisibilidade dos tipos sociais que nos compõem.
A carência de rostos de pessoas – que aparecendo comprovariam séculos de
história de convívios contraditórios – é um torturante desafio, infamando
nossas consciências. Seria melhor não ver? Meditemos: não que a fotografia
inexista como meio de expressão da e na América Latina. Não. É que nos
perdemos no retrato de paisagens dramáticas e estetizadas, na constatação de
bichos, plantas e rios, que de tão intrigantes reforçam a distância dos padrões
matriciais. Há delícias nesses devaneios, por certo, mas também há abandonos. O
mesmo se diz de panoramas exóticos, flashes de cidades complicadas, acidentes
geológicos insuspeitados, enfim, de detalhes importantes, mas que, em conjunto
anulam a centralidade das fotos humanas. É como se fugíssemos esteticamente do
olhar do ser que nos mira além do papel, daquele que nos conceitua e perturba,
induzindo a pergunta que não pode ter cara: quem somos?
Por certo, há consensos na definição de uma
narrativa reconhecida como realismo
fantástico ou realismo mágico,
nosso, expressão de uma linguagem simbólica que nos reconhece na ficção. Em
termos econômicos, nos mapas da macroeconomia existimos, é verdade. Também
temos praça nos estudos sociológicos da marginalidade, pobreza, doenças
tropicais. Sim, nessas áreas temos personalidade autenticada, mas a diversidade
das feições humanas, o plural sempre multiplicado dos tipos sociais somados,
indica outro caminho: o apagamento das aproximações de interesses alheios.
Perfilhamo-nos apenas em expressões negativas como a miséria e a exploração. No
mais, apenas dizeres ufanistas que servem para rebaixamentos e diminuição de
prestígio cultural. E num movimento rebelde ecoa a questão: por que não nos
mostramos em produtos históricos mais sofridos? Sabe-se que cá e lá aparecem
fotos artísticas, mas nunca somadas, propostas em comparações desejáveis.
É, de maneira inglória, a invisibilidade que nos
caracteriza como seres de lugares conflitantes, indecisos, mal colocados na
geografia do progresso. E isso tem uma raiz funda derivada do mote da
destruição da utopia do Paraíso terreal. Destruição de toda uma coletividade
indígena que no passado fora organizada; de legiões de negros movidos, antes
escravizados e depois reduzidos a bolsões de pobreza; de mestiços legados às
indecisões convenientes e a falta de oportunidades no mundo dos outros,
europeus ou europeizados. Existimos sim – deve-se reconhecer minimamente – mas
nossas feições repartidas em mil retraços não se impõem como mote a ser
confrontado. Faltam-nos seriações de fotos e conexões temáticas que nos
expliquem. É quando então, constatada, a noção apolínea de estética nos força a
pensar que ela tem avessos. E é exatamente esse outro lado que nos garante a
existência. E parece ser chegada a hora de mostrar isso.
A consequência mais doída de um processo de 500
anos de desmantelamento se dimensiona pela busca de dignidade. Roubados os
direitos próprios da humanização social, cuidou-se de formular uma teoria
massacrante que atribuía aos latino-americanos certa inferioridade étnica
“cientificamente” demonstrada ao longo da sombra do século XIX. Historicamente,
na rotina dos dias, viramos um “outro” colonizado, personagem sem feições,
latino-americanos, mero fenômeno a ser explicado. A perfeição do sistema de
dominação se mostrou sutil ao produzir, no próprio espaço latino-americano,
algozes capazes de repetir as estratégias de controle das vidas submetidas. E
legados à condição menor, desenvolvemos o que se chama colonialidade, ou seja, uma elite que gradua os mesmos processos de
controle social. E nos classifica. É exatamente aí que cabe o papel reversível
da fotografia de nossos tipos humanos. Eles existem, estão aí e pela mediação
de uma arte crítica, invertem a noção de modelo.