Roberto Rillo Bíscaro
Ter passado a adolescência/juventude ouvindo inglesas
como Helen Terry, Anne Lennox, Lisa Stansfield e Alison Moyet abriu meus
ouvidos pro rhythm’n’blues, soul e gospel, dentre outros subestilos de música
negra. Essas branquelas morriam de vontade de ser Aretha Franklin ou Chaka
Khan. A paixão com que cantavam frequentemente contrastava com a gelidez dos
teclados new wave/synthpop e esse descompasso é um dos traços formais mais
interessantes de grupos como o Yazoo, por exemplo, além de provavelmente ter
contribuído pra sua dissolução.
A quantidade de divas negras na Caixa de Música
testemunha e corrobora esse amor por gritaria. De blues mais rasgado nunca
consegui ser tão fã e se é cantado por varão, acho até chato (embora reconheça
a importância). Mas, se é rhythm’n’blues e mulher, procuro conhecer. Foi o caso
de JJ Thames, que nasceu na Motowniana Detroit, mas faz um som super Delta do
Mississippi, mas com influxinho pop às vezes.
A biografia de Thames é cheia de lances-pratos-cheios pra
construção da figura da cantora sentida de blues: já morou em abrigo pra
sem-teto com os filhos, cantou no metrô de Nova York, teve que largar a
carreira pra ganhar trocados como gerente de restaurante pra sustentar as
crias. Enfim, a ainda jovem JJ já demonstra na rica voz a carga de poucas e
boas por que tem passado.
Longe dos badalados centros musicais de LA e NYC, JJ
Thames vive em Jackson, Mississippi e grava pela independente Dechamp Records,
por isso não frequenta a mídia grande, mas nos sites de blues e blogosfera
alternativa, é considerada forte promessa de dama.
Em abril de 2014, JJ estreou no mundo fonográfico com
Tell You What I Know, cuja faixa-título encerra em tom autobiográfico um álbum composto
de blues e souls lentos, em sua maioria.
A abertura, Souled Out, não deixa dúvidas sobre a
história de e tradição na qual Thames se insere: mencionando Motown (Detroit) e
Mississippi e dizendo que contará sua história, a cantora já mostra do que é
vocalmente capaz num gospel, sucedido por Hey You, blusão com gaita rasgada e
tudo, daqueles que dá pra constatar bem por que o rock veio dessa matriz. A
sexy I Got What You Need também tem gaita envenenada e é rhythm’n’blues com
banjo, o que dá gostinho bluegrass no
fundo. My Kinda Man é soul, cuja
letra é meio estranha em 2016, por se inserir na tradição da adoração ampla,
total e irrestrita pelo soberano macho. Mas, tudo bem, deve ser só postura
estética, pela bio de JJ Thames. Can You Let Somebody Else Be Strong é linda
balada gospel, enquanto I’Ma Make It tem seu espírito funk no blues.
Tell You What I Know é
visceral sem exagerar na gritaria (e JJ Thames tem tórax pra isso) e mistura
diversos elementos de black music sem
soar datado, porque a produção é moderna, mas é cru demais pra púbico estritamente
pop.
Mês passado, saiu o segundo álbum, Raw Sugar, mais
diversificado, porque apresenta algumas canções mais energéticas e agitadas e
com uma JJ Thames ainda mais senhora de seu poderio vocal; soltando a voz onde
precisa, mas ainda sem cacoetes de diva esgoelante (não que eu tenha algo contra). A crueza do
açúcar titular pode ser comprovada no bluesão à BB King da faixa-título e de
Bad Man, I Don’t Feel Nothing ou Woman Scorned, esta não desagradando nem a fãs
de Lisa Stansfield. Um dos trunfos de Thames é manter a “crueza” do blues, mas
temperá-lo com aquela diversidade que parte do público mais popificado tanto
preza. Nessas e em outras faixas, sobressai a guitarra do também produtor Eddie
Cotton, mas jamais perde-se o foco: o destaque está na multinuançada voz de JJ.
Como no predecessor, Raw Sugar abre com um spiritual clamando por proteção divina a
uma jornada. Na origem escrava do blues, essas letras sempre tiveram duplo
sentido. A viagem pode ser a vida, mas também conta-se que nas plantações de
algodão sulistas, os escravos usavam tais canções para combinar ou se referirem
a planejadas fugas. Mito ou verdade, não sei, mas é bonito o significado.
Ao lado desse blues mais tradicional, lufadas Motown em I
Wanna Fall In Love ou a deslizante brisa What’s Going On(ica) de Leftovers,
puro Marvin Gaye. A letra dessa contrapõe-se à subserviência ao macho do álbum
anterior, posto que Thames canta que quer um bofe só dela, não se contenta com
restos de outra. Essa assertividade já se manifestara no bluesão I’m Leavin’,
onde abandona um relacionamento destrutivo. O quinhão autobiográfico revela-se
na balada Plan B (Abortion Blues), sobre a dureza de se decidir pela
interrupção duma gravidez. Hold Me é uma valsa soul super 70’s e Hattie Pearl é
rhythm’n’blues de orgulhar Ike and Tina Turner. E o rock veio do blues! Entre
tanta coisa boa, o arraso fica pra balada soul gospel Only Fool Was Me, onde
Thames e o saxofone estraçalham.
Se seguir na linha
ascendente indicada pelo par de álbuns, JJ Thames virará diva do blues,
independentemente de a grande mídia badalá-la.
Otimo
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