MEU BRASIL BRASILEIRO...
José Carlos Sebe Bom Meihy
Para
Eliana Malta.
Seria difícil imaginar o que
Ary Barroso quis dizer com a frase “meu Brasil, brasileiro”. O samba gravado
para o carnaval de 1939, exatamente no momento da tensão que se arrebentaria na
eclosão da Segunda Guerra Mundial, interna um conteúdo nacionalista inegável e
coerente com o tempo. Por lógico, justificava-se naquele então o uso de
bandeiras e a sagração do verde/amarelo como forma de expressão de amor à
pátria. Isso me veio à cabeça por ocasião das manifestações políticas recentes
e em particular pela retomada “patrioteira” encerrada no slogan do atual governo do PMDB. O lema “ordem e progresso”,
derivado do esvaído positivismo comteano, me leva de volta ao significado
“cívico” dos velhos tempos. Sim, é importante insistir nos chamados “velhos
tempos”, e trazer à baila algumas incompatibilidades entre o passado e o
presente.
O mundo moderno, com seus
avanços eletrônicos, sugere vivência das mudanças. Nem dá para imaginar nossas
vidas sem computadores, celulares, internet. Enfim, em tão pouco tempo
assimilamos algumas situações que pareciam loucas há trinta anos. Outro dia
conversava com meu filho que se lembrou, por exemplo, da primeira vez que viu
um código de barras ou usou o controle remoto para a televisão. Parece que
séculos foram acelerados com um toque de botão forward. Mas então, como
conciliar tantos arrojos técnicos com retomadas culturais e políticas tão conservadoras?
Foi pensando nisso que retomei o teorema central da vida brasileira hoje:
desafios modernos com conservadorismo tacanho. Confesso que me é difícil supor
que as duas pontas sejam do mesmo novelo, contudo, meu dever de historiador
implica entender os fatos para explicá-los. Munido do dever de clareza, lembro
que abrigamos em nosso país as maiores polarizações do planeta. Tendo em conta
o Índice de Gini –
o mais importante instrumento matemático para mensuração das condições de renda
e qualidade de vida das populações – nota-se que o Brasil compreende ao mesmo
tempo o índice mais elevado e a média mais baixa da Terra, tudo junto. Há em
muitas de nossas cidades e até no campo, algo igualável ao padrão de vida dos
países escandinavos, com atendimento médico e escolar, com soluções de
mobilidade e moradia comparáveis a Suécia, mas... mas, há também bolsões de
miséria em equiparação aos dramas de Niger, na África, pior país avaliado no
ranque de 188 países avaliados pela ONU.
Mesmo para
nós brasileiros é quase imperceptível constatar tais abismos. De tal maneira
estamos acostumados com a indigência que mal a enxergamos. Nos é muito mais
glamoroso notar o progresso e o desenvolvimento arremedado dos ditos “países
desenvolvidos” ou do “primeiro mundo”. E assim também não vemos que nossas
elites são constituídas majoritariamente de homens, brancos, de alta renda,
integrados nos esquemas da norma culta. A tal ponto chegamos que hoje a
judicialização da política rebaixa os poderes executivos e legislativo. Ainda
que a maioria da população seja constituída de mulheres, pagamos o vexame de
ser um dos poucos países sem representação no primeiro estágio de governo. E o
que dizer dos negros, banidos das lideranças, inclusive das forças armadas e do
clero católico? Tudo, diga-se, em nome da meritocracia. A chamada competência
tem se mostrado incompetente para reconhecer que democracia é lugar de todos.
De todos, sem distinção de gênero, raça, credo, orientação sexual, nível de
ensino. Aliás, vale recordar que até a constituição de 1988, analfabeto não
podia votar. Caberia a eles pagar impostos, serem sujeitos às penalidades legais,
mas votar não. O avesso dessa condição também intriga, pois se ter “cultura”
significasse algo, séculos de dominação governamental comandada pela tal elite
nos teria colocado no suposto “berço esplêndido”.
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