CRIANÇAS
MORTAS: fotografia e moral cidadã.
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Muitas
vezes, depois que escrevo uma crônica, costumo enviá-la para alguns colegas e
ex-alunos, pessoas que conhecem meus dilemas frente a questão do uso da arte na
sociedade contemporânea. A generosidade de amigos críticos invariavelmente me
ajuda a melhorar o texto, corrigir equívocos, propor novos ângulos. Foi
exatamente isso que aconteceu com o texto intitulado “A cara da América Latina
sem rosto”. A proposta era mostrar certa tendência presente nas séries feitas
por fotógrafos proeminentes, artistas que preferem valorizar paisagens
acidentadas, desertos, florestas, nuvens com desenhos dramáticos, mares agitados
ou bichos e plantas, tudo em detrimento dos registros dos rostos da população. Sim,
a América Latina ainda habita o imaginário universal como um polo estranho e
exótico.
Por
lógico, nesses exames rápidos, tramito entre as funções da fotografia feita
para público, com duas possibilidades mais importantes: de denúncia ou
alienação. No primeiro caso, temo que os efeitos visuais – sempre muito bonitos
– se prestem à estetização inútil, reduzindo a arte e o motivo da fotografia à
mera técnica ou discussão sobre luz, efeito e forma ou composição. No segundo
caso, sofro com o excesso de didatismo filtrado por lentes ideológicas demais,
sempre atentas à denúncia. Sem dúvida, como tantos, busco o equilíbrio oportuno
que esquadrinha combinações pertinentes. No caso da invisibilidade dos rostos
da população latino-americana tem sido o “apagamento” que me deixa perplexo e é
pela falta que me frustro. Foi, contudo, diante de problemas que avento, sobre
a relevância das mostras fotográficas, que uma colega alertou sobre o
significado de certas imagens que tem pautado o fotojornalismo em nível
internacional. De maneira contundente, disse a interlocutora “ora, professor,
veja as fotos das crianças que morrem na travessia do norte da África para a
Europa”, e, numa sequência trágica foram anexadas algumas cenas das crianças
mortas, tomadas como emblema do drama avassalador que cobre de luto a moral
globalizada. Não bastasse a punhalada
crítica, junto a alguns retratos veio o bilhete publicado, mensagem do
socorrista alemão, professor de música, de nome Martin, que disse ter visto,
dias passados, um bebê boiando na água e o corpo estava “como um boneco, com os braços
esticados”. Em continuidade afirmava o voluntário “Peguei o bebê pelo antebraço
e puxei seu corpinho para os meus braços na mesma hora para protegê-lo... os
braços dele, com aqueles dedinhos, balançaram no ar, o sol bateu nos seus
olhos, brilhantes, acolhedores, mas sem vida". E em lágrimas, concluía: “só
seis horas antes, essa criança estava viva".
A associação foi imediata, com outra foto, do
menino sírio Aylan, de 4 anos, trazido sem vida pelas ondas, numa praia turca,
no ano passado. Há outras como o do menino de 5 anos, salvo, mas ferido, em
explosão no dia 18 de agosto último em Aleppo, na Siria. A foto rodou o mundo e
doeu em muita gente. Frente a tudo isso me permito perguntas que envolvem o
fazer fotojornalístico: pode a fotografia dimensionar a notícia fazendo-a
cumprir o papel de divulgação? Qual a moral ou o limite expresso pelo apelo à
dor? Vale mostrar os corpos infantis em detrimento de outros, de velhos,
mulheres grávidas, pessoas com limitações físicas? Antes de provisórias
conclusões, lembremos que por trás de cada caso existe um sistema que permite
isso, que sabe de traficantes, de violência de toda ordem, de estupros e até de
venda de órgãos para pagar o trânsito. E vejam que estamos falando de um total,
só neste ano, de 3.171 mortes. Nesse contexto, qual o significado das
fotografias dos meninos afogados? E desdobrando a questão volto ao ponto de
partida: qual o sentido da construção da invisibilidade dos rostos
latino-americanos? Tomara que analistas de fotografia consigam responder.
Nenhum comentário:
Postar um comentário