Roberto Rillo Bíscaro
Em 1980, numa das tentativas globais de reeditar os
festivais sessentistas, uma das canções que jamais saiu de minha cabeça foi
Mais Uma Boca, de Fátima Guedes. Até hoje cantarolo (errado) o comecinho,
assim: “Quem de vocês, se chama João? sua mulher teve um filho, sozinha no
barracão.” Ela foi enquadrada na geração de letristas de denúncia social e era
bem badalada, porque a idolatrada Elis Regina gravou Onze Fitas, pro álbum
duplo Saudades do Brasil, do mesmo ano.
Aqui no então isolado noroeste do estado de São Paulo,
lembro da faixa Muito Prazer tocando nas FMs, em 1983. Essa é outra que
cantarolo sempre (corretamente). A onda roqueira que varreu o país pós-Blitz,
tirou das rádios daqui Fátima, Luis Guedes e Thomas Roth, Flávio Venturini, Lô
Borges et ali. As modas subsequentes
de lambada, fricote, axé, pagode, sertanejo e sei lá mais o que, esconderam de
vez esse tipo de MPB do grande público daqui, além de me afastarem das ondas
radiofônicas.
Recuperei contato com Fátima na era da internet. Mesmo
assim, a oferta e os interesses são tantos que só soube de Transparente, de fim
do ano passado, há poucas semanas. Mas, La Guedes não poderia ficar de fora da
seção de música mesmo com essa defasagem temporal.
Das 14 canções, apenas uma meia dúzia é inédita. Curioso,
porque ela deve ter as gavetas cheias de composições. Não me lembro de álbum
autoral seu há pelo menos uma década. Claro que não dá pra reclamar dos
arranjos esmerados e delicados que farão arrepiar os amantes da MPB safra 70’s,
mas a qualidade do material novo é tão boa que dá pena pelo que estamos
perdendo, ao mesmo tempo que torcemos pra que volte logo com álbum só com
inéditas.
Quem hoje em dia faria letra aconselhando o sujeito a
pedir a Deus por estrutura ética e consciência critica, pois há uma nova ordem
mundial? E isso sem panfleto sociopolítico, na verdade, inserida no bolero
jazzificado dor de cotovelo de Ética. Lua de Cereja é veraneio samba-funk com
contracanto de Dori Caymmi. Iê, iê, iê, iê, iê, iê, ah! Não paro de cantarolar
isso. Sempre Bate o Sol é partido alto elegantérrimo e Transparente é madrigal
delicado em melodia, arranjo e letra. Todas novidades.
A faixa Ela está numa situação intermediária, porque já
aparecera num álbum ao vivo, mas acho que pouca gente ouviu, uma vez que esse
registro sumiu do mapa. Em Transparente, Ela ganhou sua primeira versão de
estúdio. Sensual e circular melodia e letra sobre uma mulher muito maluca. Dá
vontade de sair girando pela rua, jogando flores e beijos pra estranhos.
Das demais canções, não compensa comparar qual versão é
melhor. Cheiro de Mato perdeu a intensidade dos 20 e poucos anos, mas ganhou
outra; a do lirismo jazzy mais lento. Belezas diferentes. Como reclamar do
intenso dueto com Dori Caymmi, em Flor de Ir Embora ou do clima de interior
paulista à Renato Teixeira, de A Vida Que a Gente Leva? O negócio é curtir as 2
versões.
Cantora com voz sui
generis, sem paralelo na MPB em sua dicção e entonação; Fátima Guedes pode soar
estranha pra neófitos. Mas, se você se acostumar, entrará num universo
extremamente rico, particular e que merece ser mais (re)conhecido.
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