segunda-feira, 24 de outubro de 2016

CAIXA DE MÚSICA 241


Roberto Rillo Biscaro

Fãs de pop/rock não deveriam ter preconceito contra música country. No caso do rock’n’roll, foi sua fusão com gêneros negros como o blues que tornou possível a existência de artistas de Elvis a Ghost. Há desde os casos explícitos de roqueiros que lançaram material country, como Robert Plant, até influência forte: como classificar o dedilhado da guitarra do progressivo Steve Howe, em The Clap ou de um dos pais do indie rock, Johnny Marr, em I Want The One I Can’t Have? A aproximação com o pop vai desde a impossibilidade de se dizer se tal balada é country ou não, até traços explícitos como na infecciosa Karma Kameleon, do oitentista Culture Club ou em algumas canções dos dois últimos álbuns da diva R’n’B K. Michelle.
Música de alta qualidade desconhece fronteiras de gênero e não deveria sofrer preconceito. Ponto. Ainda mais quando 3 ícones se unem, como aconteceu em 1987, quando Dolly Parton, Linda Ronstadt e Emmylou Harris lançaram seu primeiro álbum colaborativo, Trio. Já acostumadas a transpor linhas que supostamente dividem subgêneros, essas mulheres têm CV invejável. Juntas já venderam mais de 200 milhões de álbuns em carreiras que têm sobrevivido décadas e modismos mesmo dentro de seu mundo country. Em 1998, saiu Trio II e desde então nenhuma colaboração.
Se não fosse pelos sensíveis ouvidos caninos, era para se saudar com rojões o lançamento de The Complete Trio Collection, dia 3 de setembro, pela Rhino Records. O CD triplo reúne os 2 álbuns e 20 mixes alternativos ou gravações jamais lançadas das senhoras cantando juntas. Não é bem “complete”, porque ficaram de fora um par de gravações dos 70’s, mas, mesmo assim não dá para reclamar demais. O material é excepcional.
O CD 1 traz a versão remasterizada das 11 canções do fundamental Trio. O que o torna clássico – dentre tantas coisas – é a sapiência de ter escapado da sonoridade entulhada da década, o que não lhe impõe a pecha “um produto de seu tempo”. Trio, em sua sublime acusticidade de violões e banjos, é aula magna de country, folk, bluegrass, harmonias vocais celestiais (confira Making Plans, The Pain Of Loving You; quase bobagem indicar essa ou aquela) e melodias lindas de viver, como em To Know Him Is To Love Him, que faz sorrir com a linda letra romântica e mostra como as baladas 50’s são devedoras da country music. Farther Along é puro spiritual; Rosewood Casket poderia tranquilamente constar de algum álbum de folk progressivo britânico à The Amazing Blondel; Telling Me Lies agrada a quem passou pelas baladas easy listening dos 70’s e 80’s e percebe o débito desses estilos ao country e I’Ve Had Enough apenas com seu silêncio de piano dinamita a fronteira: quem diz que aquilo é country? Poderia estar em trilha da Broadway ou de desenho da Disney. E quem diz que é realmente importante saber se é tal ou tal subgênero? O negócio é ouvir essa obra-prima.


Embora gravado anos antes, Trio II saiu apenas na aurora de 1999 e não gerou singles de sucesso, porque àquela altura as 3 estavam “velhas demais” pra programação das rádios country ou da CMT (Country Music Television, que na época abriu o sinal durante meses pra quem tinha antena parabólica aqui no Brasil, então conferi um pouco da programação). Artisticamente, o álbum por pouco não é obra-prima como seu mano mais velho. O clima telúrico do country, folk e bluegrass predominante em Trio convive com um par de faixas mais próximas do country pop ou do que rolava na CMT à época, como He Rode All The Way To Texas. Sem purismo, essas faixas são boas, mas destoam da essência do que se esperava do Trio. The Blue Train caberia num álbum oitentista de Ronstadt ou da Carly Simon ou dos Pretenders. Nada contra, mas nada tem a ver com a beleza quase de endoidecer de números como High Sierra, aí sim, vemos o diferencial e a potência de harmonização da Parton, Harris e Ronstadt. Feels Like Home poderia estar num trabalho da Rita Coolidge, mas só Emmylou Harris pode levar You’ll Never Be The Sun à estratosfera sem alarde. Enfim, as três são tão boas que um Trio “inferior” ainda é 100% aproveitável.


Corriqueira nessas box-sets escarafunchadoras de baú a presença de faixas que só podem agradar a fãs obcecados. Versões que ouvintes casuais sequer conseguem distinguir das originais, canções deixadas de lado pelo óbvio motivo de serem fracas/ruins, remixes tediosamente longos ou que desconstroem a melodia, gravações ao vivo pra encher linguiça. Nada disso se passa no também remasterizado CD 3 de The Complete Trio Collection. São 20 faixas de aproveitamento também 100%. As mixagens alternativas das músicas presentes em Trio e II são quase tão boas quanto as escolhidas para os álbuns; apenas diferentes. Chega a espantar a fartura do material que tinham para escolher, porque as inéditas são igualmente mortíferas, vide Waltz Across Texas Tonight e Pleasant As May, com sua linda letra dizendo que o frio dezembro setentrional fica prazeroso como o tépido maio, ao lado do mozão. Se o spiritual Softly And Tender, por exemplo, tivesse constado do álbum de ’99, esse seria mais homogêneo e atingiria o status do primeiro, tamanha a suave força desse material inédito. Aproveitando o ensejo, os curadores incluíram colaborações esporádicas das 3, ausentes dos 2 álbuns. Se você ouvir no fone de ouvido o bung bung bung bung da popice 50tista de Mr. Sandman ficará arrepiado com a harmonização por uns bons minutos.
Infelizmente essa mágica tem chance quase zero de se repetir, uma vez que o Parkinsou aposentou Linda Ronstadt. Mas essa trinca de CDs está aí; legado dessas mulheres, que, independentemente do gênero musical, devem ser ouvidas, porque têm universos a ensinar. 

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