SÔNIA BRAGA E MINHA (DES)BRAGA(DA) (IN)SÔNIA
– sobre o filme Aquarius.
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Nunca gostei de ler
os livros que todos estão lendo. Também evito prestar atenção demasiada em
detalhes da moda, seja em termos de gosto musical, comidas ou roupas. Talvez,
essa minha idiossincrasia se explique pela vulnerabilidade que facilmente me
acomete. Sou influenciável e para me proteger busco isolamentos, silêncios e
demais artifícios defensivos. É verdade que sempre germina em meu inconsciente
a vontade de matar a curiosidade imediata e entrar na onda, mas me contenho e
até posso garantir que, com o tempo, desenvolvi técnicas especiais. Esse jeito,
aliás, já ganhou estratégias de resistência, e por vezes me vejo obrigado a
pagar caro por ficar “de fora” das últimas novidades. Não satisfaço sanhas de
imediato, mas arquivo compromissos na memória, esperando o tempo passar. Até
acredito que aprendi a ver virtudes nesse comportamento. Outra artimanha que
acalento é perceber com certa antecedência os eventos que se incendiarão no
gosto público, e quando isso se anuncia, trato de me adiantar, prevenindo-me das
tais avalanches de informações e olhares definidores do gosto alheio. Também
devo revelar que às vezes isso é difícil, pois alguns acontecimentos ganham
velocidade incontrolável e se formulam desafiadores, com sugestivas sutilezas.
Foi o que aconteceu com o filme “Aquarius”.
Gosto
imenso de cinema. Ver filmes me acalma, facilita a interrupção de rotinas
extenuantes e me ajuda fertilizar novas ideias. A primeira notícia que vi do
filme do pernambucano Kleber Mendonça Filho foi no noticiário sobre o último Festival
de Cinema de Cannes, na França. Na ocasião, o elenco mostrava para o mundo o
posicionamento contra o golpe branco que acabou por afastar a presidenta Dilma.
Dois faróis se acenderam então: um voltado ao filme propriamente dito, e, outro
ao comprometimento político da equipe artística. Ambos interessavam. E muito.
Foi assim que propus uma indagação impertinente: um aspecto tem a ver com o
outro?
Escolhi
a primeira sessão de um cinema pouco frequentado e fui como um menino que foge
da escola para ver o filme novo. Deu certo, a sala estava praticamente vazia e,
munido de pipoca e guaraná, me entreguei para a história. As primeiras cenas enterneceram
e alertaram, ao mesmo tempo: uma festa familiar remota e cenas de íntimo afeto
erótico. O surgimento de Sônia Braga, passadas décadas da reunião inicial, indicava
o caminho de uma vida que foi difícil. Não só pela beleza madura da musa dos
anos de 1970, 80, 90 e de todos os seguintes a 2000, mas também pela interpretação
perfeita. Diferente de grande parte das demais atrizes brasileiras, Sônia Braga
não precisa ser estridente e agitada em cena. Simplesmente ela é, e isso basta.
Aliás, com o nome Clara – intencional e metafórico – o desenrolar do enredo
mostrava alguém que, pelo contrário da agitação moderna, se assume na
sobriedade de uma solidão domada e reflexiva.
No
caso, temos a história de uma moradora de antigo edifício, na Praia de Boa
Viagem, chamado Aquarius, resistindo à especulação imobiliária. A história é
singular em si, com trama bem amarrada e narrativa dividida em três blocos
instruídos por flashbacks. Mas não é isso que qualifica o filme como
excepcional. A música, por exemplo, é tratada como personagem da narrativa, faz
parte integrante e essencial do enredo. Com o simpático apartamento, de frente
para o mar, tendo as paredes recobertas por livros e discos, ouve-se de
Taiguara a Queen. Assim, a música funciona como espécie de trilha sonora
explicativa do sentido do tempo narrativo que não envelhece o gosto pela vida.
E a história se completa emendando detalhes: o aniversário da empregada, as
relações parentais, idas à praia e visitar lugares com amigas.
Se tivesse que determinar um aspecto matriz do
filme, diria sem pestanejar que o fato de Clara ter passado por uma cirurgia de
câncer de mama é o grande nó da trama. Tendo extraído um dos signos mais
importantes da representação da feminilidade, o seio, a ela não cabia perder
mais nada. E a casa é a mostra mais evidente do apego à vida e sua história. O
filme é fora do comum em todos os sentidos, inclusive em cenas que machucam a
moral de falsos defensores dos chamados bons costumes. Isso valeu para que
conservadores críticos apoiassem o fato de elevar a censura para 18 anos. Mas,
não bastasse, Marcus Petrucelli, por rádio, tv e imprensa escrita, detrata a
obra, propondo, boicote ao filme, alegando que seria uma manifestação da
“esquerda cinematográfica”. Em diálogo com moralistas, ultraconservadores, o
crítico do site e-pipoca tratou de
dar continuidade às suas sanhas que, felizmente, são contrastadas com a
afluência pública que lota os cinemas. Afora tais situações, devo expressar meu
apreço pelo cinema autoral brasileiro, que no caso, só pela atuação de Sônia
Braga, valeria ter sido escolhido como o filme nacional que representaria o
Brasil na corrida pelo Oscar. Pensando nessas coisas, medindo o limite crítico
nacional, requentado nesses tempos de política sombria, vale saudar Sônia Braga
como diva capaz de iluminar noites escurecidas pela “nossa” política.
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