SOBRE “CARA METADE”, “ALMA GÊMEA” E OUTROS MITOS AMOROSOS.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Dia desses, aconteceu de ouvir de alguém sentado em degraus de uma igreja, o suplicante pedido: “por piedade, me dê uma esmola, estou com uma fome homérica”. Surpreso, perguntei “fome homérica? A senhora sabe quem foi Homero? Meio assustada, a interlocutora acidental respondeu “Homero, Homero, eu não sei, mas a fome é bem grande”. Mesmo tendo por prática não dar esmolas isoladas de informações, deixei uns trocados e segui meu caminho pensado nas sutilezas das apropriações populares de expressões complexas, algumas derivadas do domínio da cultura erudita. Foi assim que me lembrei de termos como “quixotesco”, “balzaquiana” e me perguntava sobre as sutilezas de livros fundadores da cultura erudita, passadas para o saber popular.
Ainda sob o impacto dessa constatação, fui pra casa e me pus a arrumar meus arquivos de entrevistas de projetos de pesquisa. Sempre fascinado com as gravações, de vez em quando ouço uma ou outra. Foi quando comecei a prestar atenção em algumas expressões usadas em casos de histórias que implicavam envolvimentos afetivos, principalmente histórias amorosas. E ia anotando repetições que se avolumavam poderosas, exigindo reflexões. Como um dos pressupostos dos estudos em história oral demanda análises sobre memória coletiva, foi sob esta chave que fui anotando algumas prevalências e repetições amiúdas: “cara metade”, “coração partido”, “alma gêmea”... Não raro despontava também “amor cego” e “amor bandido”. Especial curiosidade, contudo, era despertada ao ouvir falar de “amor platônico”. A soma dessas referências, de repente, me assombrou, chegando a se constituir em matéria de questionamentos mais consequentes. Não resisti. Logo formulei uma hipótese de trabalho e animado me lancei na buscar das origens desses termos. O primeiro, que me instigou a pensar nos demais, foi “amor platônico”, pois a “República” sempre esteve entre os livros mais instigantes que li. A ligação com outros textos de Platão, como “Banquete”, se deu quase que de maneira automática, pois sabia que nele estavam contidas as bases das considerações sobre os sentimentos amorosos que atravessam toda a cultura ocidental, de base judaico-cristã.
E me deliciei na referência de que “amor platônico” derivava da suposição que o filósofo fazia à relação, até então inominada, do jovem Alcebíades ao seu venerado mestre Sócrates. No esforço de definir o amor ideal, separado das relações carnais, ao pensar no amor puro, sem sexo, foi cunhada a expressão que perdura até o presente e é tão usada. Estava, assim, dada a partida para uma investigação que prometia desdobramentos. E novamente repontava Platão contando em passagem excitante da movimentada peça, colocada na boca do personagem Fédro, a história de um ente mitológico que era feliz por ter em si três características sexuais perfeitamente harmonizadas: a atração mulher-homem; mulher-mulher; homem-homem. Tal encontro tão pleno teria resultado em um poder de felicidade e isso seria tão exuberante que Júpiter, invejoso, sacou de sua lança fatídica e, num golpe definitivo, partiu em dois a figura antes completa e realizada. Reza a lenda que desde então uma parte fracionada começou a buscar seu complemento, a sua “cara metade” ou “alma gêmea”. Parece que junto com a ira de Júpiter, a maldição da dificuldade passou a acompanhar os mortais que se viram complicados com os constantes desencontros. A infelicidade amorosa, pois, seria explicada por essa razão. Também encontrei em Platão o fundamento da expressão “amor bandido”, pois a inviabilidade do encontro do amor completado pelo outro, os desentendimentos provocados pelos erros nas buscas, seriam os responsáveis pelas desgraças e traições.
O fascinante destas “citações populares” convida a pensar na durabilidade das transmissões que se fazem permeáveis por séculos e tradições culturais diferentes. E não me contenho em querer informações sobre os modos de recepções que permitiram viagens tão improváveis como da oralidade grega, à escrita ou à imagética, e agora de volta a oralidade popular. Aprende-se, então, que “há realmente mais mistérios entre o céu e a Terra do que a vã filosofia dos homens possa imaginar". Aliás, isto também é mitológico, como diria Shakespeare que um dia também foi popular.
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