quarta-feira, 9 de novembro de 2016

CONTANDO A VIDA 171

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ADOCICAÇÃO DO SACI NA CULTURA BRASILEIRA.

José Carlos Sebe Bom Meihy


Convidado pela Universidade Federal do MS para falar sobre o Saci, confesso que fiquei, a um tempo, tentado e medroso. A tentação se explica pelo atrativo da estruturação de um texto que, por fim, exigiria forma para tantas ideias soltas, hipóteses formuladas ao longo de anos de suposições sobre o significado do folclore na cultura formal. Lembrando que em 1917 Monteiro Lobato se investiu do dever de registro, estava aberto o caminho para a retomada do tema. O medo – e que medo! – se justificava pela vastidão dos aspectos que cruzam evocações tidas como subjetivas, permeadas em nossa memória cultural. E eis que, de repente, estava frente a um elenco de possibilidades convidativas da desistência. Mas, insisti, valendo-me de duas características do estranho e cativante personagem: a insistência e a traquinagem. Foi assim que “traquinamente insisti” e, dessa forma, tive que colocar no meu radar, alguns itens carentes de integração: sou historiador; gosto de Monteiro Lobato, trabalho com oralidade. Pronto, não tinha mais caminho de volta. Estava composto o redemoinho que me levaria para o fundo do rio onde, aliás, moraria o Saci.

Mas por onde começar? Por evidente, li o que tinha ao alcance. Retomei “Histórias de Tia Nastácia” e voltei ao diálogo que mantenho com Marisa Lajolo, desde 1988, sobe o negro na literatura lobateana, e, por lógico me perguntei de saída por que seria o Saci negro? Visitei contos de vários autores que abordam o assunto direta ou de maneira tangente; revi comentários críticos e não desdenhei o debate recente sobre o racismo na produção literária, folclórica e histórica. Foi difícil escapar desse debate que, pela mitologia nacional inscreve, com sedução, o tema Saci. Consegui, acho. O passo seguinte me levou para a complexa viagem ao passado, buscando as possíveis raízes da figura do Saci desde suas primeiras manifestações registradas até a incorporação, pela literatura, nas novas mídias como cinema e televisão. O mero enunciado dessa trajetória me sugeria algum chão. Foi quando juntei fios, começando a trançar uma narrativa problematizadora.

De onde teria vindo a lenda do Saci? Das três alternativas – indígena, africana ou europeia – tive que prezar todas. Pensei de saída que, ante a impossibilidade de precisão, me vi obrigado a todas, acatar comodamente a alternativa abrigada no conceito de “metamorfose”. É inegável que pela imprecisão de uma origem definida se chega a um modelo hoje estabelecido. Temos no presente a figura de um Saci palatável, interessante, domesticado, aceito, principalmente fabricado para crianças. Trata-se de dupla infantilização: do Saci em si – que tomou a forma de um menino – e do endereço de seu consumo, em particular em histórias para crianças. É lógico que nesse trânsito ele apresentou como um tema pedagógico sutil. Creio que é aí que reside seu maior risco, pois essa metamorfose dimensiona um viés ideológico. A imagem que hoje temos do Saci é de uma figura transformada. Sem dúvida, o padrão dado pela Rede Globo de Televisão mostra um negrinho simpático, de uma só perna, capuz e calça vermelhos. O Saci de nossos dias não é mais o maldoso personagem que punha fumaça pelos olhos, com pés e mãos com três pontas, ente que atormentava. O atual é um malandrinho que faz suas travessuras sem maiores danos. De maneira sorrateira, em favor do “politicamente correto”, foi aliviado o olhar ameaçador e retirado o “condenável” pito/cachimbo.

Dando asas ao voo histórico, me permiti pensar na tropicalização do diabo europeu, projetado pelo Cristianismo aterrorizador. Contrastando com o demo segundo os padrões derivados da Idade Média, pude pensar na “adocicação” do demônio que entre nós não manteve odores insuportáveis, perdeu o rabo e ganhou ares toleráveis e de negociador. Teria ocorrido o mesmo com o Saci? Talvez essa prática de tradução das severidades metropolitanas na colônia explicasse a possibilidade da absorção de um outro tipo, de origem paraguaia, identificado como Yasy Yateré. Nesse caso, desde o século XVI, dada a dispersão dos Guarani rumo a diferentes espaços brasileiros, seria possível a difusão pelo Brasil. E há versões que contemplam detalhes regionais da adaptação do Saci. No nordeste brasileiro, por exemplo, acredita-se que suas manifestações decorrem da raiva de um moleque que perdeu a perna num jogo de capoeira. No norte, é comum aproximá-lo da ave Matintaperera que, em 1973, foi incorporada na canção “águas de março”. Diga-se, aliás, que o álbum intitulado Matita Perê, remete a uma tradição que diz que uma ave noturna vira gente durante o dia, assombrando os transeuntes perdidos na floresta. Por uma ou por outra via, o que temos é a garantia de a cultura brasileira, antropofagicamente, engolir padrões e se apropriar deles, os transforma. Isso é ideológico.

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