ADOCICAÇÃO DO SACI NA CULTURA BRASILEIRA.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Convidado pela
Universidade Federal do MS para falar sobre o Saci, confesso que fiquei, a um
tempo, tentado e medroso. A tentação se explica pelo atrativo da estruturação
de um texto que, por fim, exigiria forma para tantas ideias soltas, hipóteses
formuladas ao longo de anos de suposições sobre o significado do folclore na
cultura formal. Lembrando que em 1917 Monteiro Lobato se investiu do dever de
registro, estava aberto o caminho para a retomada do tema. O medo – e que medo!
– se justificava pela vastidão dos aspectos que cruzam evocações tidas como
subjetivas, permeadas em nossa memória cultural. E eis que, de repente, estava
frente a um elenco de possibilidades convidativas da desistência. Mas, insisti,
valendo-me de duas características do estranho e cativante personagem: a
insistência e a traquinagem. Foi assim que “traquinamente insisti” e, dessa
forma, tive que colocar no meu radar, alguns itens carentes de integração: sou
historiador; gosto de Monteiro Lobato, trabalho com oralidade. Pronto, não
tinha mais caminho de volta. Estava composto o redemoinho que me levaria para o
fundo do rio onde, aliás, moraria o Saci.
Mas por onde
começar? Por evidente, li o que tinha ao alcance. Retomei “Histórias de Tia
Nastácia” e voltei ao diálogo que mantenho com Marisa Lajolo, desde 1988, sobe
o negro na literatura lobateana, e, por lógico me perguntei de saída por que
seria o Saci negro? Visitei contos de vários autores que abordam o assunto
direta ou de maneira tangente; revi comentários críticos e não desdenhei o
debate recente sobre o racismo na produção literária, folclórica e histórica.
Foi difícil escapar desse debate que, pela mitologia nacional inscreve, com
sedução, o tema Saci. Consegui, acho. O passo seguinte me levou para a complexa
viagem ao passado, buscando as possíveis raízes da figura do Saci desde suas
primeiras manifestações registradas até a incorporação, pela literatura, nas
novas mídias como cinema e televisão. O mero enunciado dessa trajetória me
sugeria algum chão. Foi quando juntei fios, começando a trançar uma narrativa
problematizadora.
De onde teria vindo
a lenda do Saci? Das três alternativas – indígena, africana ou europeia – tive
que prezar todas. Pensei de saída que, ante a impossibilidade de precisão, me
vi obrigado a todas, acatar comodamente a alternativa abrigada no conceito de
“metamorfose”. É inegável que pela imprecisão de uma origem definida se chega a
um modelo hoje estabelecido. Temos no presente a figura de um Saci palatável,
interessante, domesticado, aceito, principalmente fabricado para crianças.
Trata-se de dupla infantilização: do Saci em si – que tomou a forma de um
menino – e do endereço de seu consumo, em particular em histórias para crianças.
É lógico que nesse trânsito ele apresentou como um tema pedagógico sutil. Creio
que é aí que reside seu maior risco, pois essa metamorfose dimensiona um viés
ideológico. A imagem que hoje temos do Saci é de uma figura transformada. Sem
dúvida, o padrão dado pela Rede Globo de Televisão mostra um negrinho
simpático, de uma só perna, capuz e calça vermelhos. O Saci de nossos dias não
é mais o maldoso personagem que punha fumaça pelos olhos, com pés e mãos com
três pontas, ente que atormentava. O atual é um malandrinho que faz suas
travessuras sem maiores danos. De maneira sorrateira, em favor do
“politicamente correto”, foi aliviado o olhar ameaçador e retirado o
“condenável” pito/cachimbo.
Dando asas ao voo
histórico, me permiti pensar na tropicalização do diabo europeu, projetado pelo
Cristianismo aterrorizador. Contrastando com o demo segundo os padrões
derivados da Idade Média, pude pensar na “adocicação” do demônio que entre nós
não manteve odores insuportáveis, perdeu o rabo e ganhou ares toleráveis e de
negociador. Teria ocorrido o mesmo com o Saci? Talvez essa prática de tradução
das severidades metropolitanas na colônia explicasse a possibilidade da absorção
de um outro tipo, de origem paraguaia, identificado como Yasy Yateré. Nesse caso,
desde o século XVI, dada a dispersão dos Guarani rumo a diferentes espaços
brasileiros, seria possível a difusão pelo Brasil. E há versões que contemplam
detalhes regionais da adaptação do Saci. No nordeste brasileiro, por exemplo,
acredita-se que suas manifestações decorrem da raiva de um moleque que perdeu a
perna num jogo de capoeira. No norte, é comum aproximá-lo da ave Matintaperera
que, em 1973,
foi incorporada na canção “águas de março”. Diga-se, aliás, que o álbum
intitulado Matita Perê, remete a uma tradição que diz que uma ave noturna vira
gente durante o dia, assombrando os transeuntes perdidos na floresta. Por uma
ou por outra via, o que temos é a garantia de a cultura brasileira,
antropofagicamente, engolir padrões e se apropriar deles, os transforma. Isso é
ideológico.
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