INTELECTUAL
BREGA: motéis e traições conjugais...
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Não
é sempre, mas de vez em quando baixa em mim um gosto bizarro por coisas da
chamada “cultura cafona”. Quando isso acontece, meu lado brega desperta e me
domina. Então, logo me vejo consultando o Google em busca de algumas baixarias musicais
ditas “do povão”. E olhe que aí entram a Valesca Poposuda (Acredito em Deus/ faço ele de escudo/ Late mais alto que daqui eu não
te escuto/ Do camarote, quase não dá pra te ver), Wesley Safadão (Não sei se é amor/ Se é um caso, ou se é um
fica/ Eu só sei que no final a gente se dá bem). E haja Anitta, Thiaguinho,
Timóteo, Alcione.
Pois é... não consigo negar que esse meu “lado B” convive com minha imagem mais exposta, de sóbrio professor de história, viúvo respeitável, cidadão aposentado que trata de temas sisudos e que fala de política defendendo “velhas ideologias”. O atroz desse enredo é que ao voltar para a realidade dos meus dias de “velhinho de Taubaté” me vejo desafiado a explicações: como assim, me pergunto? E as repostas brotam em cascatas. Logo vou construindo argumentos sociológicos, justificativas antropológicas e até desenvolvo contextos históricos na base da cultura de massa e dos fundamentos pós-modernos. Quando consigo dar lógica a tudo isso, encontro o sentido da vida ordinária e recomponho meus lados opostos. Deixe-me exemplificar o que sucedeu ainda ontem...
Andava eu cansado com a ladainha de desgraças que acomete este nosso viver brasileiro: corrupção, greve, arranjos políticos escusos, desemprego, assaltos, sequestros... Feito breve inventário de nosso desassossego, neguei o apreço a Marx e dei asas à mais legítima alienação. Ah, como é bom se deixar entorpecer pelo “ópio do povo”. Flanei e, sem pudor algum, me entreguei de corpo, alma e emoções. Coisa rara: passei uma tarde toda ouvindo músicas “daquelas faixas”. Prazerosamente largado – quase uma luxuria – passava um a um pelos recentes sucessos. Mas... mas depois, aos poucos, fui notando a construção de uma epopeia popular que, no fundo, traduzia dilemas cruciais das relações modernas. Como a picardia faz parte daquele tipo de cancioneiro, fui trocando em miúdo os dilemas comuns aos relacionamentos líquidos (Baumam, sempre ele) até que o espírito controlado que habita em mim voltava a me acometer. Sem perceber, o tal lado circunspecto baixou, e assim fui triando a sedução dos cantares aparentemente tolos, dando lugar à perversidade de juízos racionais “sérios”.
Como estou falando com franqueza, devo dizer que o tema “motel” me chamou a atenção e no eixo temático “vulgar”, três gravações mais que todas. A primeira foi “Aventura no Motel” de um tal de Duduzinho, que contava para a companheira de trabalho “Lembra aquele dia em que eu sai mais cedo/ De fininho pra ninguém desconfiar/ Te orientei que se minha mulher ligasse/ Perguntasse por mim você iria dichavar/ Olha aquele dia era perfeito/ O noivo dela viajando/ Ela querendo eu não podia adiar/ Fim do mês eu duro, sem dinheiro/ Mesmo assim tava maneiro/ Fiz a pose não deixei ela desconfiar” A continuidade da história revela que a “convidada” pediu de tudo “caviar e chandon” e “Pro meu azar a única suíte era a presidencial”. Ainda que o final da noitada tenha sido bom, a mulher do sujeito descobriu pela fatura do cartão de crédito e “a casa caiu”, pois “como eu vou me defender se estava escrito na fatura”. A moral da história é conclusiva: “agora eu to solteiro quem mandou ser infiel” e “pagar com meu cartão minha aventura no motel”.
O
segundo caso foi tirado de um álbum chamado Forró da Curtição e dá conta de um
flagra dado pela esposa que canta sob o título “50 reais”, na voz de Gabi Amarantos “Bonito, que
Bonito ehm/ mas que cena mais linda/ será que eu estou atrapalhando o
casalzinho ai/ que lixo, você está de brincadeira/ então é aqui o seu/ futebol
toda quarta feira?”. E o enredo
prossegue com o brado da esposa “e não
precisa se vestir/ eu já dei tudo que eu tinha te ver aqui” e se vale da
metáfora do futebol para concluir “que decepção,
1 a 0 para minha intuição” e justificando o sucesso estrondoso termina “não sei se dou na cara dela para doer em
você/ mas eu não vim te atrapalhar, saudade de te ver/ e pra ajudar a pagar a
Dama que lhe satisfaz/ toma aqui cinquenta reais”.
Existe um intérprete
chamado Mayrone Brandão que canta “Sabonete
de Motel”. Devo dizer que esta é imbatível e revela que a esposa encontrou
“Ali, no porta-luvas do meu carro, um
objeto identificado/ um sabonete num papel dourado”. O sabonete revelava a
traição que era explicada pelo marido como engano porque “emprestei meu carro pra um amigo passear e ele não me disse que iria se
encontrar/ com a garçonete daquele bar/ não tenho nada a ver se eles trouxeram
de lá/ aquele objeto pra me complicar”. E então entra um refrão acelerado “o sabonete de motel, foi a brincadeira de um
amigo meu/ não deixe isso abalar, a nossa relação não não não não”.
Pois bem, não se trata apenas de identificar
machismos, traições conjugais ou mulheres reagindo. Mais do que notar a construção
de uma memória coletiva onde os relacionamentos são postos a juízo, vale dizer
que tais questões da ética comportamental comum se colocam na ordem do dia,
transformando os dilemas de relacionamentos como temas sociológicos. O que
perturba mesmo, contudo, é o fato de eu me deixar levar pela sinfonia musical
que traduz tais questões.
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