Roberto Rillo Bíscaro
Numa dessas tardes tórridas, deu vontade de ver algo bem
britânico, deve ter sido síndrome de abstinência de Downton Abbey. Sempre tenho
estocado algum terror, alguma inglesice idealizada, porque volta e meia tenho
comichões por esses 2 quitutes. Olhei num HD externo e vi arquivo chamado The
Making of a Lady (2012), teleprodução da ITV, a mesma de Downton Abbey.
Ao terminar, não podia crer no que vira e busquei info
online. Nunca li Sabrina ou Bianca – aqueles romances açucarados pra moças –
mas acreditava que seria algo no estilo. Até tem romance e idealização de
montão, mas a ideologia imperial parecia filmada nos anos 1940. Descobri
tratar-se dum mashup de 2 romances da
escritora menor Frances Hodgson Burnett, que nos anos 90 ganhou fama no Brasil
por causa da linda adaptação d’O Jardim Secreto (1993). Não me interessou saber
quais livros basearam The Making of a Lady, porque jamais os lerei, mas o título
da junção tem pouco a ver com o conteúdo, porque não assistimos à construção do que idealizamos por uma aristocrata, e não foi isso que me fez duvidar do
que vira.
É assim: Emily é uma pobre orfã de família boa, mas
destituída, que trabalha pruma leide qualquer (Joanna Lumley, de Absolutely
Fabulous, sweetie!), que tem um sobrinho viúvo, cuja “obrigação” é produzir
herdeiro pra que sua imensa propriedade e títulos não passem prum irmão de
reputação dúbia e que voltara maleitoso da Índia e, pior, casado com uma
nativa. Só que Lord James Walderhurst aparentemente não quer ninguém e pra
pararem de enchê-lo, pede a mão de Emily. Em 15 minutos de filme, a moça passa
de devedora de aluguel a her ladyship
numa mansão à Downton, com mordomo e governantas mal-encarados e tudo. Até aí,
tranquilo, era essa enganação total de mobilidade social que eu queria mesmo e
tem tudo: ambientes vastos e suntuosos, sotacaço britânico, muita empáfia, mesa
de 5 metros de cumprimento pra 2 pessoas uma em cada ponta, muito violino na
trilha; Downton de quinta, mas quem diz que me importo, se tem “can’t”
pronunciado britanicamente?
Emily começa a conquistar Lord Walderhurst, até transam
bem vitorianamente, ambos de camisolão, mas o “dever” chama-o novamente à
distante e quente Índia e nossa heroína vê-se só numa vasta propriedade sem
amigos. Eis quando recebe a visita do cunhado, Capitão Alec Osborn, e sua
esposa indiana. A partir daí, as coisas se complicam. Será que ele está
conformado com a possibilidade de ficar de fora da herança, uma vez que tenha
sobrinhos?
The Making of a Lady daria ótima Sessão da Tarde anos
1970, mas ideologicamente está nos idos do Império Britânico, quando tudo que
equivalia ao “exótico” era mau. Não dava pra crer que produtores de TV na era
da suposta primazia do politicamente correto e do multiculturalismo tenham
produzido tal narrativa num grande canal como a ITV. Burnett operava no início
do século XX, quando isso era “normal”, mas hoje não deixa de causar espécie
que tudo correlacionado ao indiano seja nocivo ou ameaçador, desde a comida,
até a música incidental que acompanha as personagens indianas ou ligadas à
Índia. Que a obra da autora tenha sido adaptada sem adaptações também diz
bastante sobre se nacionalismos estão realmente fora de moda na
pós-modernidade.
The Making of a Lady é passo atrás no feminismo, na
política das identidades negociadas e multiculturais e deve causar diarreia em
certos ativistas e acadêmicos. Homi Bhabha deve ter babado de ódio com esse
babado.
Mas, descontei tudo isso,
desconjurei o maniqueísmo impróprio e racista, senti que os produtores não
tenham tido a ideia de deixar todo mundo da mesma cor pra evitar espicaçar
grupos subalternos (mas cuja economia cresce e incomoda) e curti com moderação
a Sessão da Tarde reaça de The Making of a Lady. E, claro, gente, tudo acaba
bem e racialmente “puro” e segregado.
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