terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

TELINHA QUENTE 246

Resultado de imagem para the making of a lady film
Roberto Rillo Bíscaro

Numa dessas tardes tórridas, deu vontade de ver algo bem britânico, deve ter sido síndrome de abstinência de Downton Abbey. Sempre tenho estocado algum terror, alguma inglesice idealizada, porque volta e meia tenho comichões por esses 2 quitutes. Olhei num HD externo e vi arquivo chamado The Making of a Lady (2012), teleprodução da ITV, a mesma de Downton Abbey.
Ao terminar, não podia crer no que vira e busquei info online. Nunca li Sabrina ou Bianca – aqueles romances açucarados pra moças – mas acreditava que seria algo no estilo. Até tem romance e idealização de montão, mas a ideologia imperial parecia filmada nos anos 1940. Descobri tratar-se dum mashup de 2 romances da escritora menor Frances Hodgson Burnett, que nos anos 90 ganhou fama no Brasil por causa da linda adaptação d’O Jardim Secreto (1993). Não me interessou saber quais livros basearam The Making of a Lady, porque jamais os lerei, mas o título da junção tem pouco a ver com o conteúdo, porque não assistimos à construção do que idealizamos por uma aristocrata, e não foi isso que me fez duvidar do que vira.
É assim: Emily é uma pobre orfã de família boa, mas destituída, que trabalha pruma leide qualquer (Joanna Lumley, de Absolutely Fabulous, sweetie!), que tem um sobrinho viúvo, cuja “obrigação” é produzir herdeiro pra que sua imensa propriedade e títulos não passem prum irmão de reputação dúbia e que voltara maleitoso da Índia e, pior, casado com uma nativa. Só que Lord James Walderhurst aparentemente não quer ninguém e pra pararem de enchê-lo, pede a mão de Emily. Em 15 minutos de filme, a moça passa de devedora de aluguel a her ladyship numa mansão à Downton, com mordomo e governantas mal-encarados e tudo. Até aí, tranquilo, era essa enganação total de mobilidade social que eu queria mesmo e tem tudo: ambientes vastos e suntuosos, sotacaço britânico, muita empáfia, mesa de 5 metros de cumprimento pra 2 pessoas uma em cada ponta, muito violino na trilha; Downton de quinta, mas quem diz que me importo, se tem “can’t” pronunciado britanicamente?
Emily começa a conquistar Lord Walderhurst, até transam bem vitorianamente, ambos de camisolão, mas o “dever” chama-o novamente à distante e quente Índia e nossa heroína vê-se só numa vasta propriedade sem amigos. Eis quando recebe a visita do cunhado, Capitão Alec Osborn, e sua esposa indiana. A partir daí, as coisas se complicam. Será que ele está conformado com a possibilidade de ficar de fora da herança, uma vez que tenha sobrinhos?
The Making of a Lady daria ótima Sessão da Tarde anos 1970, mas ideologicamente está nos idos do Império Britânico, quando tudo que equivalia ao “exótico” era mau. Não dava pra crer que produtores de TV na era da suposta primazia do politicamente correto e do multiculturalismo tenham produzido tal narrativa num grande canal como a ITV. Burnett operava no início do século XX, quando isso era “normal”, mas hoje não deixa de causar espécie que tudo correlacionado ao indiano seja nocivo ou ameaçador, desde a comida, até a música incidental que acompanha as personagens indianas ou ligadas à Índia. Que a obra da autora tenha sido adaptada sem adaptações também diz bastante sobre se nacionalismos estão realmente fora de moda na pós-modernidade.
The Making of a Lady é passo atrás no feminismo, na política das identidades negociadas e multiculturais e deve causar diarreia em certos ativistas e acadêmicos. Homi Bhabha deve ter babado de ódio com esse babado.
Mas, descontei tudo isso, desconjurei o maniqueísmo impróprio e racista, senti que os produtores não tenham tido a ideia de deixar todo mundo da mesma cor pra evitar espicaçar grupos subalternos (mas cuja economia cresce e incomoda) e curti com moderação a Sessão da Tarde reaça de The Making of a Lady. E, claro, gente, tudo acaba bem e racialmente “puro” e segregado. 

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