Roberto Rillo Bíscaro
A experiência do diretor Roberto Berliner com
documentários informa o tempo todo seu filme Nise – O Coração da Loucura (2016),
divulgado erroneamente por alguns meios como cinebiografia da psiquiatra Nise
da Silveira. Nada disso, trata-se de período específico de sua carreira, quando
encetou reviravolta no tratamento de clientes (terminologia dela) com
distúrbios mentais. O roteiro não está interessado em anedotas sobre a vida da
gateira Nise; usa apenas o necessário para que constatemos os efeitos de sua
visão mais humana de psiquiatria nas vidas dos pacientes, que recebem tanta
atenção quanto a médica.
Isso tem que ficar bem claro, porque aspectos cruciais de
sua trajetória - como a prisão nos cárceres getulistas, junto com Graciliano
Ramos – estão ausentes e devem ser entendidos como escolha estética, que, se
por um lado implicam que esse quadro fique meio no ar, por outro, investiga-o
em suas nuanças. A Dra. Nise retorna ao hospital sem que saibamos onde estava;
apenas mais tarde um dos colegas acusa-a de comunista, mas isso não clarifica
muito, vivendo num país onde pessoas saem às ruas contra Hillary Clinton,
porque a supõem vermelha. Ao final, quando se apagam as luzes do ateliê
hospitalar, onde tantos quadros lindos foram pintados, também desconhecemos o
que aconteceu com Nise daí por diante. Na verdade, nem sabemos o que aconteceu
em sua vida fora da profissão nesses anos em que comandou o desvalorizado setor
de terapia ocupacional do hospital no Engenho Novo. Nise – O Coração da Loucura
está igualmente interessado nos clientes, tão caros à terapeuta.
Nise da Silveira volta ao hospital bem no meio de uma
palestra sobre eletrochoque e lobotomia, aclamados como grandes avanços no
tratamento das doenças mentais. Ficamos sabendo que ela é contra a violência
terapêutica, por isso vai para a TO. Pouco depois, a vemos com seu marido e
rodeada por gatinhos. As informações sobre sua vida pessoal são mantidas no
mínimo necessário para entendermos como isso influencia sua abordagem médica,
porque Silveira introduziu animais e arte para os pacientes.
Despreocupada com incidentes biográficos
“desnecessários”, a câmera fica livre para passear entre os clientes e suas
múltiplas formas de “loucura”. A qualidade das atuações é excelente, desde
Glória Pires protagonizando (será mesmo?) até aquele cliente lá do cantinho,
que escreve na parede com cocô, mas recebe atenção diegética também, por que
não? Dra. Nise não desprezava nenhum deles, então a câmera também não.
Berliner poderia ter sido um pouco mais camarada e
colocado aqueles pequenos textos explicativos ao final, para sabermos alguns
destinos, como por exemplo, se depois do terrível massacre no pátio, ela
continuou o trabalho. Ao invés disso, há gravações da própria psiquiatra, já
anciã. Quem quiser saber antecedentes e destinos que pesquise.
Nise - O Coração da Loucura é absorvente docudrama sobre
o poder da arte, dos animais, da perseverança, dedicação e amor, mediados por
profissionalismo e teorias, também muito pertinente de salientar para os tolos
que acham que só o coração basta.
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