Dossiê Madame Bovary
Roberto Rillo Bíscaro
Desde reler Madame Bovary, deu vontade de constatar o que
cineastas e roteiristas de TV aprontaram com o clássico de Flaubert. Claro que
não se tratou de ver qual versão é “mais fiel” ao livro, porque essa suposta semelhança
só pode ocorrer no nível mais básico da fábula, afinal, são modos distintos de
expressão. Mas, tinha curiosidade de ver quanto do maciço caráter de sátira
social, havia sido transposto nas adaptações. Não muito, parece que o pessoal
adora mesmo um drama sobre “mulheres decaídas”.
Em 1949, Vincent–Pai-da-Lisa (quem?)-Minelli fez uma adaptação em branco e preto, defendendo a liberdade de expressão, poucos anos antes de o macarthismo destruir carreiras em Hollywood, daqueles que ousaram expressar-se. Aproveitando o litígio judiciário causado pelo romance, o filme coloca Gustave Flaubert como narrador, defendendo seu livro e heroína, colocando-a como fruto duma sociedade que a ensinou a gostar de Cinderela, a valorizar o amor idealizado em detrimento da vida real, mostrada como monótona pelos romances. Minelli criticando a própria indústria de cine, que sistematicamente faz isso desde sua criação. Tais discussões tornam a película provocadora. A cena mais marcante é a do baile, onde Emma rodopia desvairada com um nobre, antes de passar vergonha com o marido bêbado; Minelli numa cena mostra o que é o bovarismo. Roteiro é diferente de livro, então, diverte ver a criação da cena onde o arsênico é apresentado pra que o público não o tenha depois como conveniente demais, mas desaponta que Charles tenha que ter ganho mais consciência e até certo altruísmo, quando desiste de operar o pé torto de Hyppolite ou saque as infidelidades da esposa. Flaubert era mais cortante do que a cultura de massa quase 100 anos depois da publicação, mas mesmo assim, vale a pena ver.
Em
1975, a BBC adaptou o romance pras telinhas, em 4 capítulos. Dadas as condições
técnicas e dificuldades econômicas inglesas da época, quase tudo se passa
dentro de poucos cenários, o que não é de todo mal, porque representa o
confinamento sentido pela personagem. Embora nesta versão o espectador saiba
que Emma é o segundo casamento de Charles, não fica claro que ele tenha casado
com a primeira mais pelo dinheiro. Além disso, ele é tão bonzinho e bobinho,
que a esposa passa por megera mal-agradecida. Francesca Annis é minha Emma
Bovary favorita. Você pode ver tudo no Yutube sem legenda.
Dado
o pedigree de Claude Chabrol e o
filme ser da terra de Flaubert, a adaptação de 1991 pode ser bem pertinente e é
realmente a melhor que vi. Mas nem o crítico da burguesia escapa da armadilha
de individualizar a pequena tragédia da madame. Como nas demais adaptações, a
eliminação do antecedente das famílias dilui o sentido de crítica coletiva que
tem o romance, sem dizer que o aspecto de ironia farsesca do narrador vai todo
pro brejo, ainda que Chabrol estivesse ciente das limitações da forma
cinematográfica ao incluir um narrador que aparece em momentos onde a
consciência de Emma precise ser penetrada. Por que nenhum roteirista cria um
Charles Bovary matizado? Flaubert não o fez tão vítima: e o primeiro casamento
por dinheiro, onde fica? Não fica, porque adaptação alguma mostra os capítulos
iniciais. Parece que a cultura ocidental, em sua maioria, tem dó de corno
macho? Pelo menos o filme de Chabrol narra os destinos da pequena Berthe e de
Homais, 2 das grandes maldades de Flaubert.
Em
2000 a BBC fez mini de 2 capítulos, exibidos primeiro nos EUA. Fãs de Downton Abbey gostarão, porque Charles Bovary é Hugh Bonneville, o Lord Grantham.
Trilha sonora bonita, a mediocridade e as limitações de cama de Charles estão
lá, inclusive a desastrada operação no pé de Hyppolite e até cena inicial
mostrando que Emma era fogosa demais pra vida num convento. O que faltou foi
explicitar que Leon e Rudolphe não a amavam de verdade, como dá a entender o
roteiro. Também parece que Emma era satisfeita com os casos enquanto duraram.
Não, provavelmente nada seria capaz de aterrar o poço sem fundo de carência
emocional que era essa filha de campesinos que ousou ser classe-média.
E
eis que em 2015 foi lançada a primeira releitura roteirizada e dirigida por uma
mulher, Sophie Bartes. E que decepção! Madame Bovary é inegavelmente belo em
cinematografia e vestuário, mas a norte-americana deve ter visto produção
britânica demais, pois troca o excelente baile na casa do visconde por uma
caçada (depois dizem da “sensibilidade” feminina, sei...) na propriedade dum
marquês, que depois vira amante de Emma, eliminando Rudolphe da trama. Tem hora
que é lento demais, tem hora que é tão de repente que nada explica. Invisibilizando
as demais personagens que não fossem do núcleo familiar direto dos Bovary (que
nessa versão nem filha tem), Bartes individualiza a história de Emma, quando na
verdade, o buraco em Flaubert estava mais embaixo, porque impiedosamente expõe
todos ao ridículo. Se dá bem quem sabe esconder ou usar a
mediocridade/sem-vergonhice a seu favor. Decisões como dar a entender que o
casamento com Charles foi arranjado pelo pai – o filme começa com uma
subserviente Emma se casando – tornam-no só mais uma película sobre
infidelidade, onde a noção de Realismo se traduz em filmar vestido com barra
suja de barro. Bartesinha não entendeu nada do livro, né fia? A não ser pra fãs
de Mia Wasikowska, a Sophie da temporada primeira de In Treatment, essa Madame
Bovary tem depressão a oferecer e não a ebuliente histeria tão bem descrita
pelo narrador discreto flauberiano.
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