MEMÓRIAS
CAIPIRAS: ensaio de uma geração
José
Carlos Sebe Bom Meihy
Para
Evaldo.
Muito
se tem falado em memória. Como tema
de conversas corriqueiras, se evocam lembranças, reminiscências, recordações,
tudo emblemado no conforto dessa palavra, memória.
Mais solene, vezes há em que se apela para a memória como reverência aos mortos e, então, um latinzinho nos socorre para significar
saudade: in memoriam... Gosto do
composto internado na alusão aos antepassados, pois, no caso, memória é a extensão do tempo, das
sensações que existem quando fisicamente o ente amado não está mais junto de
nós. E sou, posso dizer, um colecionador de saudade. A complicar tudo, porém,
repontam os estudos acadêmicos sobre “memória”, e então os conteúdos se
complicam, exigindo desde definições biológicas do que é memória, até suas intrincadas acepções sociológicas, tão em voga
nas ciências sociais. Nesse caso, aliás, são replicados estudos sobre memória:
individual, coletiva, social, cultural, política. Sinceramente, precisei deste
introito todo para falar de algo que me comove. Explico-me...
Não
sou exatamente dado a participar ativamente de redes sociais. Por lógico, como pessoa
do meu tempo, não tenho como deixar de compor listas de parentes, amigos,
profissionais, e até de partido político. Tenho enorme orgulho de dizer que não
sou viciado nisso, não integro a relação de quantos não conseguem viver sem
suas maquininhas ligadas. Faço uso parcimonioso e permito-me, orgulhosamente,
situar-me entre os comedidos. Uma das lições que tenho exercitado na posse de
um smartphone (sim, é dessa forma que se escreve corretamente, caso contrário,
aportuguesado, seria “esmartefone”) é, ironicamente, algo decorrente dos multiplicados
“estudos sobre memória”, ou seja, a seletividade. Aprendi, por exemplo, a
relativizar mensagens de ódio político, resignar-me frente a amigos amados que
têm percepções extremadas sobre personagens que me são relevantes. Os ganhos
são imensos. Juro. Tudo isso para dizer que um belo dia, faz mais de um ano,
fui convidado para ingressar em uma rede de amigos da juventude. Foi o que
bastou para se abrir em mim um compartimento enorme, esvaziado pelo corre-corre
da vida, pela luta docente, pelas responsabilidades familiares. Foi
surpreendente o tamanho do espaço que me permiti internamente. E como foi bom,
pois de repente verifiquei que o passado não passou, que tudo está vivo,
levemente adormecido na latência explicativa do melhor de mim. E tudo se
apresenta com promessas de despertares perfumados. Sim, há algo de poético
nessa evocação. Se cabe poesia, há também ambiente para o sentido épico da
vida. Ao longo dos dias, a tal lista foi se ampliando e, creio, hoje supera 150
amigos. São 150 detalhes de esquinas de afetos, dobradas em favor do que sou
hoje. Ninguém passou ileso na constituição do que me tornei. Ninguém, nem nada.
Meu
lado historiador não tem como deixar de lado este fenômeno. O tempo, senhor da razão, como diziam os
helênicos, vai dando forma e permitindo explicações sobre tudo. E, de maneira
mágica, vamos entendendo os rumos de uma geração toda; da minha geração.
Meninos e meninas do interior paulista, integrantes de uma classe média que se
inaugurou no Brasil pós Segunda Guerra Mundial, ao longo dos anos fomos nos
imiscuindo na vida nacional, cumprindo diferentes papeis, assumindo postos.
Grosso modo, pode-se dizer que presidiu uma diferença: os que ficaram e os que
saíram. Essa bifurcação prática, angula um vértice fatal: o que significou
nosso passado de jovens que tiveram suas trajetórias perpassadas por uma longa
ditadura civil/militar? Como nossas experiências de caipiras, interioranos,
taubateanos, teriam moldado comportamentos e nos colocado em pautas mais
amplas, nacionais?
A
identificação geográfica de onde estamos diz muito. Referencial exigente, a
mera constatação dos sítios de residências atuais diz muito de nossos destinos.
Espalhados pelo Brasil afora, é fácil constatar não apenas os desempenhos
profissionais, mas muito mais do que isso, a permanência das fontes que
animaram nossas vidas nos tais “anos dourados”. O mais espantoso nesse enredo é
que não descuidamos de nossos dias de rapazes que fomos. É quando, então, são
recordados velhos professores, personagens das lendas urbanas, parentes
queridos, festas e celebrações, jogos esportivos e bailinhos. Tudo iluminado
por transparências idílicas, fantasiadas de alegria e conforto. Espantoso:
exilam-se os vestígios de dores, de arranhaduras preconceituosas, falhas de
rejeições. Tudo vira uma legenda de saudade e ganha a graça que precisamos para
sobreviver. É exatamente aí que reside a sedução da lembrança. Quando deixamos
de fazer história para dar vivacidade à memória,
perdemos o significado do racional, e em troca reinventamos as delícias do que
poderia ter sido. Meditando sobre estas coisas todas, entendo agora o teor do
termo saudosismo e me deixo levar... Levar e lavar a alma...
Nenhum comentário:
Postar um comentário