quarta-feira, 29 de março de 2017

CONTANDO A VIDA 184

LÁ ONDE DEIXEI MEU CORAÇÃO DE MENINO...
Ou
UM CLUBE ENTRE OS ANOS DOURADOS E OS ANOS DE CHUMBO.

 José Carlos Sebe Bom Meihy

Lembro-me de uns versos que sempre me vêm à cabeça em situações especiais. O poeta então parece me dizer baixinho, quase murmurando: Entre devagar/ quieto, leve, manso/ deixe apagadas as luzes/ dos cantos do passado/ desmonte a bússola/ para aprender a não retornar/ Entre, mas uma vez só, e não volte nunca mais”. Essas palavras, confesso, rondaram minhas noites e dias recentes, tomaram conta de mim, e se infiltram em meus dedos ao escrever esta crônica anunciada. Diria mesmo que não fui o autor do enunciado que segue, foi o poema. Tudo isso porque me comprometi a falar sobre um lugar especial de minha juventude, um clube da minha interiorana Taubaté. Da minha Taubaté que um dia foi inventariada como uma das cidades mortas. Morta? Morta Taubaté?... Que nada! Rebelde, renasce em cada coração que viu crescer e, assim vive assombrando a memória de eternos exilados, errantes do que naquele espaço aprenderam a ser o que hoje são. Adultos, acabamos por aprender mirar o passado que para uns pode ser até mera lembrança, mas para outros – eu entre eles – chega a doer demais.

Sempre achei que saudade é dos melhores sentimentos. Há certa altivez em ultrapassar o limite do raso “sentir falta”. A solenidade da saudade é progressiva, pois remete a boas experiências - às melhores - mas pode ser tão avassaladora que temos que domesticá-la para que não nos adoeça de nostalgias. Talvez, por isso insista em deixá-la latejando no meu coração que envelhece sem conseguir negar a meninice. Aqui cabe um segredo: nem sempre quero voltar aos lugares mais marcantes de minha trajetória. Algo covarde, tenho medos. Medo, por exemplo, de quebrar o encanto de momentos que ganharam a perfeição no correr dos anos. Sim, a saudade maquia, enfeita, arredonda, enfeitiça. E me é prazeroso deixar que isso tudo se faça.

Sei que pode parecer estranho eleger um clube como espaço central de reflexões memorativas. Poderia ser uma escola, igreja, uma praça talvez, mas um clube?! Sim, o Taubaté Country Club – assim mesmo, pretencioso, metido a inglês, lugar que nem ficava no campo – nada, era bem perto do centro da cidade. Mas o adotamos como TCC, e para a gente funcionava como uma espécie de paraíso urbano, uma miniatura de tudo de bom. Lá, inversão do espaço doméstico, podíamos muito. E como exercitamos esses poderes. Mas porque um clube marcaria tanto uma geração inteira? A resposta a esta questão remete a buscas de plurais explicativos que comungam bailinhos, jogos esportivos variados, espaços para encontros e, para os adultos, até corria um carteado, algo meio clandestino, mas... mas acontecia.

Vendo de hoje, o TCC era como um laboratório, um ensaio para rapazes e moças que exercitavam lá os passos da vida adulta. O prédio era levemente cinza e guardava a discrição de um estilo que evocava ao colonial brasileiro, mas isso pouco importava. E havia então outros espaços, internos, onde a circulação permitia os primeiros olhares namoradores, as aproximações mais calorosas em danças que podiam ocorrer nas matinés ou com certa cerimônia no Salão Nobre. Aliás, de vez em quando havia teatro, com peças vindas de fora, e cá e lá uma ousadia da dramaturgia local, récitas de jograis e até canto lírico. E tinha festivais de músicas que, de tão concorridos, aconteciam no Ginásio ou, como estava escrito no alto frontal, Gymnasium. Bem, a simples menção da praça de esportes implica evocar os jogos de basquete, vôlei e principalmente de futebol de salão. E como torcíamos! Tinha também a piscina que tanto divertia como revelava campeões, craques lembrados até hoje. As duas quadras de tênis funcionavam com ares mais exclusivos, mas não menos integradas. E bem mais ao fundo tinha um modesto campo. Mas o Clube era tudo isso junto.

Vendo sociologicamente, era no TCC que a classe média se media. Havia restrição para associados, mas isso não perturbava os frequentadores que, bem de acordo com os protocolos do tempo, pouco se importavam com os “não sócios”. Havia certo respeito por tantos que lutavam para integrar o corpo de associados que, afinal, insistia em pertencer ao que se tinha como ideal ou padrão urbano para o Vale do Paraíba.

Para a minha juventude houve um momento de corte na vida do Clube e nossa. Foi na vigência dos anos dourados, do período democrático do governo de Juscelino Kubistchek, de 1956 a 1964.  Pronto: está dada a chave explicativa de tudo. Como um verdadeiro laboratório social, os jovens também exercitavam participações na diretoria do TCC. Foi assim que entre 1963 e 1967, cheguei – entre outros colegas – a integrar a direção. Fui primeiro diretor cultural e depois diretor social. Diria sem medo de errar que foi a fase áurea de nossa geração. O vigor do iê iê iê, do rock, do twist, competia com a bossa nova e, então, de Trini Lopez ao Fino da Bossa (com Elis Regina e Jair Rodrigues), de Elza Soares a Juca Chaves, muitos passaram por nossos palcos. E tinha o Baile das Debutantes, dos Casados, Azul e Branco. Dentre tantos convidados de fora, porém, a lembrança que mais me faz feliz foi ajudar o show de dois taubateanos que se lançavam para nossa eternidade, os irmãos Roberto e Renato Teixeira. Sim, o “Samba em três tempos” marcou a passagem deles pelo TCC. E minha vida também.

Mas, os tempos mudaram. E muito. A começar pela política e isso fez com que nossa juventude inteira tivesse que aprender a viver debaixo de uma ditadura que, afinal, nos convocava para outras vivências, bem menos divertidas ou cidadãs. Na medida em que a censura, o cerceamento das liberdades, o exercício das escolhas e todos os desdobramentos dos anos de chumbo aconteciam, fomos perdendo a alegria, ficando mais sisudos, tristes. Corria no inventário das carências crescentes a vontade de participar em grupo, de atuar no conjunto de possibilidades dignas do ideal de uma geração. Fomos ficando mais quietos, mais sozinhos, mais atentos aos nossos planos individuais de sucesso profissional. E viramos a página. Diria sem medo de errar que houve um marco na participação geracional daquele tempo, no TCC. A queda do Gymnasium. A forte ventania de 1982 derrubou o prédio. Caiu o nosso sonho que parece ter durado até a Abertura política. Derrubado o majestoso espaço de tantas alegrias passadas, ruiu também o sonho de uma geração que era feliz e não sabia. Desculpem-me, mas não tenho coragem de voltar ao TCC. Imaginando hoje o Clube e minha geração, pergunto-me se o sonho acabou.

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