LÁ
ONDE DEIXEI MEU CORAÇÃO DE MENINO...
Ou
UM
CLUBE ENTRE OS ANOS DOURADOS E OS ANOS DE CHUMBO.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Lembro-me
de uns versos que sempre me vêm à cabeça em situações especiais. O poeta então
parece me dizer baixinho, quase murmurando: Entre
devagar/ quieto, leve, manso/ deixe apagadas as luzes/ dos cantos do passado/
desmonte a bússola/ para aprender a não retornar/ Entre, mas uma vez só, e não
volte nunca mais”. Essas palavras, confesso, rondaram minhas noites e dias
recentes, tomaram conta de mim, e se infiltram em meus dedos ao escrever esta
crônica anunciada. Diria mesmo que não fui o autor do enunciado que segue, foi
o poema. Tudo isso porque me comprometi a falar sobre um lugar especial de
minha juventude, um clube da minha interiorana Taubaté. Da minha Taubaté que um
dia foi inventariada como uma das cidades
mortas. Morta? Morta Taubaté?... Que nada! Rebelde, renasce em cada coração
que viu crescer e, assim vive assombrando a memória de eternos exilados,
errantes do que naquele espaço aprenderam a ser o que hoje são. Adultos,
acabamos por aprender mirar o passado que para uns pode ser até mera lembrança,
mas para outros – eu entre eles – chega a doer demais.
Sempre
achei que saudade é dos melhores sentimentos. Há certa altivez em ultrapassar o
limite do raso “sentir falta”. A solenidade da saudade é progressiva, pois
remete a boas experiências - às melhores - mas pode ser tão avassaladora que temos
que domesticá-la para que não nos adoeça de nostalgias. Talvez, por isso
insista em deixá-la latejando no meu coração que envelhece sem conseguir negar
a meninice. Aqui cabe um segredo: nem sempre quero voltar aos lugares mais
marcantes de minha trajetória. Algo covarde, tenho medos. Medo, por exemplo, de
quebrar o encanto de momentos que ganharam a perfeição no correr dos anos. Sim,
a saudade maquia, enfeita, arredonda, enfeitiça. E me é prazeroso deixar que
isso tudo se faça.
Sei
que pode parecer estranho eleger um clube como espaço central de reflexões
memorativas. Poderia ser uma escola, igreja, uma praça talvez, mas um clube?! Sim,
o Taubaté Country Club – assim mesmo, pretencioso, metido a inglês, lugar que
nem ficava no campo – nada, era bem perto do centro da cidade. Mas o adotamos
como TCC, e para a gente funcionava como uma espécie de paraíso urbano, uma
miniatura de tudo de bom. Lá, inversão do espaço doméstico, podíamos muito. E
como exercitamos esses poderes. Mas porque um clube marcaria tanto uma geração
inteira? A resposta a esta questão remete a buscas de plurais explicativos que
comungam bailinhos, jogos esportivos variados, espaços para encontros e, para
os adultos, até corria um carteado, algo meio clandestino, mas... mas
acontecia.
Vendo
de hoje, o TCC era como um laboratório, um ensaio para rapazes e moças que
exercitavam lá os passos da vida adulta. O prédio era levemente cinza e
guardava a discrição de um estilo que evocava ao colonial brasileiro, mas isso
pouco importava. E havia então outros espaços, internos, onde a circulação
permitia os primeiros olhares namoradores, as aproximações mais calorosas em
danças que podiam ocorrer nas matinés ou com certa cerimônia no Salão Nobre.
Aliás, de vez em quando havia teatro, com peças vindas de fora, e cá e lá uma
ousadia da dramaturgia local, récitas de jograis e até canto lírico. E tinha
festivais de músicas que, de tão concorridos, aconteciam no Ginásio ou, como
estava escrito no alto frontal, Gymnasium. Bem, a simples menção da praça de
esportes implica evocar os jogos de basquete, vôlei e principalmente de futebol
de salão. E como torcíamos! Tinha também a piscina que tanto divertia como
revelava campeões, craques lembrados até hoje. As duas quadras de tênis
funcionavam com ares mais exclusivos, mas não menos integradas. E bem mais ao
fundo tinha um modesto campo. Mas o Clube era tudo isso junto.
Vendo
sociologicamente, era no TCC que a classe média se media. Havia restrição para
associados, mas isso não perturbava os frequentadores que, bem de acordo com os
protocolos do tempo, pouco se importavam com os “não sócios”. Havia certo
respeito por tantos que lutavam para integrar o corpo de associados que,
afinal, insistia em pertencer ao que se tinha como ideal ou padrão urbano para
o Vale do Paraíba.
Para
a minha juventude houve um momento de corte na vida do Clube e nossa. Foi na
vigência dos anos dourados, do
período democrático do governo de Juscelino Kubistchek, de 1956 a 1964. Pronto: está dada a chave explicativa de tudo.
Como um verdadeiro laboratório social, os jovens também exercitavam
participações na diretoria do TCC. Foi assim que entre 1963 e 1967, cheguei –
entre outros colegas – a integrar a direção. Fui primeiro diretor cultural e
depois diretor social. Diria sem medo de errar que foi a fase áurea de nossa
geração. O vigor do iê iê iê, do rock, do twist,
competia com a bossa nova e, então, de Trini Lopez ao Fino da Bossa (com Elis
Regina e Jair Rodrigues), de Elza Soares a Juca Chaves, muitos passaram por
nossos palcos. E tinha o Baile das Debutantes, dos Casados, Azul e Branco.
Dentre tantos convidados de fora, porém, a lembrança que mais me faz feliz foi
ajudar o show de dois taubateanos que se lançavam para nossa eternidade, os
irmãos Roberto e Renato Teixeira. Sim, o “Samba em três tempos” marcou a
passagem deles pelo TCC. E minha vida também.
Mas, os tempos mudaram. E muito. A começar pela
política e isso fez com que nossa juventude inteira tivesse que aprender a
viver debaixo de uma ditadura que, afinal, nos convocava para outras vivências,
bem menos divertidas ou cidadãs. Na medida em que a censura, o cerceamento das
liberdades, o exercício das escolhas e todos os desdobramentos dos anos de chumbo aconteciam, fomos
perdendo a alegria, ficando mais sisudos, tristes. Corria no inventário das
carências crescentes a vontade de participar em grupo, de atuar no conjunto de
possibilidades dignas do ideal de uma geração. Fomos ficando mais quietos, mais
sozinhos, mais atentos aos nossos planos individuais de sucesso profissional. E
viramos a página. Diria sem medo de errar que houve um marco na participação
geracional daquele tempo, no TCC. A queda do Gymnasium. A forte ventania de
1982 derrubou o prédio. Caiu o nosso sonho que parece ter durado até a Abertura
política. Derrubado o majestoso espaço de tantas alegrias passadas, ruiu também
o sonho de uma geração que era feliz e não sabia. Desculpem-me, mas não tenho
coragem de voltar ao TCC. Imaginando hoje o Clube e minha geração, pergunto-me
se o sonho acabou.
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