Roberto Rillo Bíscaro
Cada um com sua opinião e gostos, mas não vejo sentido em
possuir Netflix apenas pra ver o mesmo velho e batido conteúdo norte-americano
das séries de sucesso da moda. Nada contra, mas não é de minha personalidade.
Como gracejou um conhecido, aprecio afundar nos “porões da Netflix”. Recentemente,
vi 2 séries argentinas disponíveis no serviço de streaming. Se não tentamos o novo, como descobriremos coisas boas,
não é vero? Tipo, a catalã Merlí tá lá no catálogo, sem alarde, sem verba de marketing. É só fuçar e dar uma chance.
Viu um pouco e não gostou? OK, passa pra outra; tem tanta coisa!
Cheguei a pensar em desistir de Estocolmo (2016), mas
acabei vendo a trezena de capítulos da muito bem produzida, mas
roteiristicamente mal projetada primeira produção argentina feita pela Netflix.
O excelente primeiro capítulo promete história brilhante.
Um lindo e bem-sucedido casal – ele um procurador da República “caça-corruptos”
e ela a mais famosa âncora de TV do país – estão em um programa de entrevistas,
quando a moça recebe mensagem no celular de que um antigo desafeto está de
volta pra pegá-los. Surtada, Rosário sai atirando em rede nacional (nunca
sabemos as consequências dessa ação, humph!). Flashback para 3 anos antes, quando vemos a jornalista no ar,
fazendo o maior sensacionalismo em cima do sequestro de Larissa Torres. Rosario
se interessa pelo caso, mas ao mesmo tempo quer extrair o maior caldo dramático
possível e por isso inibe ao vivo o trabalho do investigador Franco Bernal (seu
maridón de 3 anos depois). No
episódio de estreia, já aprendemos que todo mundo tem algo a esconder, desde
Bernal aos pais de Rosário, poderosos proprietários da estação de TV. Intuímos
também que por trás do sequestro da jovem Larissa está poderosa organização de
tráfico humano. Tudo muito urdido, pra deixar o espectador na ponta do anzol,
ansioso pelos capítulos seguintes.
Os 13 episódios seguem a estrutura de cenas iniciais e
finais no presente e todo um longo miolo com o ocorrido 3 anos antes. Pena que
essa explicação quase nunca ocorra. Na verdade, as ações presentes são bem
pouco explicadas (estou sendo gentil). O grande problema de Estocolmo – cujo
nome vem da Síndrome de Estocolmo – é que enfiaram tanta coisa no roteiro, que
não tem como clarificar ou desatar os nós. Parece que a intenção era chocar e
jogar todas as cartas avidamente nessa primeira investida da Netflix em nosso
vizinho platino.
O resultado é que se promete muito, mas se entrega pouco.
Ameaças, falas bombásticas que não resultam em ação, personagens fazendo coisas
sem sentido ou ficando sem rumo (o que fizeram com a pobre Rosarito, no início
tão pró-ativa?). Paralela à organização que lucra com a escravidão há um
assassino em série, que ao final parece que será (notem o tempo verbal) integrado
à história. É coisa demais e lógica/explicação demais de menos.
O elenco bom e a cinematografia linda - apresentando uma
Argentina austral superescandinava de Nordic Noir – proporcionam excelente
verniz a Estocolmo, mas escrutinado, o roteiro sucumbe a tantos vazios. A
Netflix parece que já garantiu segunda temporada, mas não posso recomendar.
Epitáfios, da HBO, é muito melhor.
Na primeira metade dos anos 80, a família Puccio vivia no
chique bairro de San Isidro, na grande Buenos Aires. Filhão mais velho era
astro do time de rugby do
aristocrático clube do bairro, tinha noiva bonita, loira e gostosa. Casona do
bem. Um clã vívido e feliz, vivendo o “sonho argentino” de afluência prometido
pelos militares. Só que num quarto secreto da grande casa, mantinham
sequestrados, a cujas famílias instruíam não contatar a polícia, caso contrário
matariam os reféns. Por medo, razões políticas (os Puccios fingiam ser grupo
revolucionário) ou discrição, famílias obedeciam a ordem e erravam feio: pago o
resgate, as vítimas eram mortas. Até um companheiro de rugby do primogênito Alejandro
caiu nas garras dos monstrengos. E morreu.
Essa história pavorosa já foi contada no bem-sucedido e
bom filme El Clan e em 2015, nos 11 capítulos da minissérie da Telefe, História
de um Clan. Recomendo ambos, mas a minissérie tem muito mais tempo pra detalhes
e o roteiro é genial quando se trata de mostrar o quão estranha e doentia era
aquela gente. Tudo concorre pra isso, até mesmo a câmara muitas vezes
sexualizada, quando, por exemplo, enquadra o rosto de uma das filhas de modo a
também passar pelos mamilos de um sexagenário sem camisa. A cara de menina
inocente encarando o peito e a barriga do velho são apenas um dos elementos de
bizarrice filmados de forma cotidiana. Sem contar as várias cenas com o pai (não
só com as meninas, prestem atenção) ou quando as meninas – acompanhadas de uma
freira lésbica – simulam um parto, usando uma boneca negra. São tantas cenas
reiterando que por trás da normalidade social jaz muita loucura, que talvez
desse pra serem 10 capítulos, caso enxugassem um tiquinho.
O elenco é perfeito, mas o epicentro é a demolidora
interpretação de Alejandro Awala, o cunhado antimacrista de Macri. Arquimedes
Puccio é um daqueles “papeis da vida” de qualquer ator. Profundamente
homofóbico (com problemas de ereção, claro!), com falas de arrepiar de revolta
de classe, licenciosidade, carolice, o chefe do clã Puccio chama a esposa de
mami pra em seguida admitir a um cúmplice que adoraria chupar a futura nora
todinha.
Clichê afirmar que a
realidade supera a ficção, mas História de Um Clan - com seus sequestradores
mascarados, sem braço ou tarados por menininhas – logra ser estranha pra burro
usando quase apenas elementos do dia-a-dia.
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