terça-feira, 21 de março de 2017

TELINHA QUENTE 251

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Roberto Rillo Bíscaro

Cada um com sua opinião e gostos, mas não vejo sentido em possuir Netflix apenas pra ver o mesmo velho e batido conteúdo norte-americano das séries de sucesso da moda. Nada contra, mas não é de minha personalidade. Como gracejou um conhecido, aprecio afundar nos “porões da Netflix”. Recentemente, vi 2 séries argentinas disponíveis no serviço de streaming. Se não tentamos o novo, como descobriremos coisas boas, não é vero? Tipo, a catalã Merlí tá lá no catálogo, sem alarde, sem verba de marketing. É só fuçar e dar uma chance. Viu um pouco e não gostou? OK, passa pra outra; tem tanta coisa!

Cheguei a pensar em desistir de Estocolmo (2016), mas acabei vendo a trezena de capítulos da muito bem produzida, mas roteiristicamente mal projetada primeira produção argentina feita pela Netflix.
O excelente primeiro capítulo promete história brilhante. Um lindo e bem-sucedido casal – ele um procurador da República “caça-corruptos” e ela a mais famosa âncora de TV do país – estão em um programa de entrevistas, quando a moça recebe mensagem no celular de que um antigo desafeto está de volta pra pegá-los. Surtada, Rosário sai atirando em rede nacional (nunca sabemos as consequências dessa ação, humph!). Flashback para 3 anos antes, quando vemos a jornalista no ar, fazendo o maior sensacionalismo em cima do sequestro de Larissa Torres. Rosario se interessa pelo caso, mas ao mesmo tempo quer extrair o maior caldo dramático possível e por isso inibe ao vivo o trabalho do investigador Franco Bernal (seu maridón de 3 anos depois). No episódio de estreia, já aprendemos que todo mundo tem algo a esconder, desde Bernal aos pais de Rosário, poderosos proprietários da estação de TV. Intuímos também que por trás do sequestro da jovem Larissa está poderosa organização de tráfico humano. Tudo muito urdido, pra deixar o espectador na ponta do anzol, ansioso pelos capítulos seguintes.
Os 13 episódios seguem a estrutura de cenas iniciais e finais no presente e todo um longo miolo com o ocorrido 3 anos antes. Pena que essa explicação quase nunca ocorra. Na verdade, as ações presentes são bem pouco explicadas (estou sendo gentil). O grande problema de Estocolmo – cujo nome vem da Síndrome de Estocolmo – é que enfiaram tanta coisa no roteiro, que não tem como clarificar ou desatar os nós. Parece que a intenção era chocar e jogar todas as cartas avidamente nessa primeira investida da Netflix em nosso vizinho platino.
O resultado é que se promete muito, mas se entrega pouco. Ameaças, falas bombásticas que não resultam em ação, personagens fazendo coisas sem sentido ou ficando sem rumo (o que fizeram com a pobre Rosarito, no início tão pró-ativa?). Paralela à organização que lucra com a escravidão há um assassino em série, que ao final parece que será (notem o tempo verbal) integrado à história. É coisa demais e lógica/explicação demais de menos.
O elenco bom e a cinematografia linda - apresentando uma Argentina austral superescandinava de Nordic Noir – proporcionam excelente verniz a Estocolmo, mas escrutinado, o roteiro sucumbe a tantos vazios. A Netflix parece que já garantiu segunda temporada, mas não posso recomendar.
Epitáfios, da HBO, é muito melhor.

Na primeira metade dos anos 80, a família Puccio vivia no chique bairro de San Isidro, na grande Buenos Aires. Filhão mais velho era astro do time de rugby do aristocrático clube do bairro, tinha noiva bonita, loira e gostosa. Casona do bem. Um clã vívido e feliz, vivendo o “sonho argentino” de afluência prometido pelos militares. Só que num quarto secreto da grande casa, mantinham sequestrados, a cujas famílias instruíam não contatar a polícia, caso contrário matariam os reféns. Por medo, razões políticas (os Puccios fingiam ser grupo revolucionário) ou discrição, famílias obedeciam a ordem e erravam feio: pago o resgate, as vítimas eram mortas. Até um companheiro de rugby do primogênito Alejandro caiu nas garras dos monstrengos. E morreu.
Essa história pavorosa já foi contada no bem-sucedido e bom filme El Clan e em 2015, nos 11 capítulos da minissérie da Telefe, História de um Clan. Recomendo ambos, mas a minissérie tem muito mais tempo pra detalhes e o roteiro é genial quando se trata de mostrar o quão estranha e doentia era aquela gente. Tudo concorre pra isso, até mesmo a câmara muitas vezes sexualizada, quando, por exemplo, enquadra o rosto de uma das filhas de modo a também passar pelos mamilos de um sexagenário sem camisa. A cara de menina inocente encarando o peito e a barriga do velho são apenas um dos elementos de bizarrice filmados de forma cotidiana. Sem contar as várias cenas com o pai (não só com as meninas, prestem atenção) ou quando as meninas – acompanhadas de uma freira lésbica – simulam um parto, usando uma boneca negra. São tantas cenas reiterando que por trás da normalidade social jaz muita loucura, que talvez desse pra serem 10 capítulos, caso enxugassem um tiquinho. 
O elenco é perfeito, mas o epicentro é a demolidora interpretação de Alejandro Awala, o cunhado antimacrista de Macri. Arquimedes Puccio é um daqueles “papeis da vida” de qualquer ator. Profundamente homofóbico (com problemas de ereção, claro!), com falas de arrepiar de revolta de classe, licenciosidade, carolice, o chefe do clã Puccio chama a esposa de mami pra em seguida admitir a um cúmplice que adoraria chupar a futura nora todinha.
Clichê afirmar que a realidade supera a ficção, mas História de Um Clan - com seus sequestradores mascarados, sem braço ou tarados por menininhas – logra ser estranha pra burro usando quase apenas elementos do dia-a-dia. 

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